Quando cruzou o portão saindo de um dos cárceres onde ficou preso por 27 anos, o líder sul-africano Nelson Mandela sabia o que precisava deixar para trás. Ódio, mágoa, amargura não podiam lhe acompanhar. Esperança e firmeza, sim. O Prêmio Nobel da Paz de 1993 escrevia naquele dia mais uma página da história que o marcaria como um dos maiores líderes mundiais de todos os tempos. Se estivesse vivo, Mandela teria completado 100 anos no último dia 18 de julho, data que está sendo celebrada como um marco na luta contra o racismo e em defesa da democracia e dos direitos humanos.
O ano de 2018, por sinal, está carregado de significados para o povo negro: o mês de abril marcou os 50 anos do assassinato do norte-americano Martin Luther King. Em maio, foram comemorados os 130 anos de assinatura da Lei Áurea. A procuradora de Justiça e coordenadora do GT Racismo do Ministério Público de Pernambuco, Bernadete Figueiroa, destaca a relação do líder sul-africano com os dias atuais. “Mandela teve uma história de repressão e de encarceramento que se reproduz até hoje. Então é aproveitar esse momento dos cem anos de Mandela, que representa essa luta, toda essa resistência, e, sobretudo, a desconstrução desses laços racistas. É um marco no sentido da visibilidade e da desconstrução de um Apartheid global. Aqui, no Brasil, nós temos um Apartheid que não é legal, que é no dia a dia das pessoas”.
Ícone contrário à divisão entre brancos e negros na África do Sul, o nome de Nelson Mandela se destacou no combate ao regime de segregação racial que dominou o país a partir de 1948, o chamado Apartheid. Fundador do primeiro escritório de advocacia liderado por negros, ele defendia uma resistência pacífica ao Governo. Foi preso em 1956, acusado de traição, e absolvido em 1961. Depois se engajou na luta armada após o massacre de 69 manifestantes negros pela polícia e o banimento do Congresso Nacional Africano, partido ao qual tinha se filiado na época da universidade. Em 1962, Mandela foi encarcerado por cinco anos, acusado de incentivo a greves e de sair do país sem autorização. Dois anos depois, foi condenado à prisão perpétua por sabotagem e por conspirar para outros países invadirem a África do Sul, fatos sempre negados por ele. A libertação veio em 11 de fevereiro de 1990, com a abertura do Apartheid em razão das sanções internacionais. Mandela foi manchete na imprensa de todo o mundo e continuou atuando contra o regime de segregação racial. Em 1993 ganhou o Nobel da Paz e, em 1994, foi eleito presidente da República na primeira eleição multirracial da África do Sul, que pôs fim ao perfil de discriminação que governou o país por 46 anos.
Em 10 de maio de 94, no discurso de posse, Mandela reafirmou os compromissos contra as desigualdades, em favor da reconciliação e da harmonia racial: “Nos comprometemos a construir a paz completa, justa e durável. Temos triunfado no nosso desejo de implantar esperança em milhões de pessoas. Assumimos o compromisso de construir uma sociedade em que todos os sul-africanos, tanto negros quanto brancos, possam caminhar de cabeça erguida, sem nenhum medo no coração, certos de contar com o direito inalienável da dignidade humana: uma nação resplandecente, em paz consigo mesma e com o mundo”.
A professora do Departamento de Métodos e Técnicas de Educação da UFPE, Auxiliadora Martins,criou a disciplina eletiva de Educação em Africanidades e Afrodescendências, cumprindo a lei que obriga instituições educacionais a ensinar história e cultura afrobrasileira e africana. À frente do Grupo de Estudos e Pesquisas em Autobiografia, Racismo e Anti-racismo na Educação, ela ressalta a importância da luta de Mandela em nível mundial e aponta o Brasil como um país racista. “Um país que tem 54% da população que se autodeclara negra. No entanto, essa população não está nos cargos de mando e poder. É como se nós tivéssemos dois brasis: um Brasil pra branco, um Brasil pra negro. 70% dos jovens que são assassinados pela polícia, entre 15 e 29 anos, são negros. As mulheres que morrem nas maternidades, a maioria é negra”.
A coordenadora de Formação Política da Rede de Mulheres Negras, Rosa Marques, concorda com as observações e assinala que a democracia racial no Brasil é um falso mito. “Porque as desigualdades, sejam físicas ou psicológicas, elas persistem até hoje. Essas ideologias criadas desde o século passado, desde o período da escravização, elas se perpetuam ainda”.
Os debates sobre o racismo no centenário de Mandela estão sendo realizados em todo o mundo. Ele morreu em 5 de dezembro de 2013, aos 95 anos, mas permanece vivo na luta contra a discriminação racial, como diz Auxiliadora Martins citando o apelido de infância do líder sul-africano. “Você chama de Mandela, eu chamo: Mandiba, Mandiba, Mandiba. Está vivo entre nós e jamais irá morrer”.
Desde 2009, a ONU estabeleceu 18 de julho como Dia Internacional de Nelson Mandela. Para mais informações acesse: nelsonmandela.org.