Aborto legal: participantes de debate na Comissão de Saúde manifestam apoio à equipe do Cisam

Em 19/08/2020 - 21:08
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ELOGIO – Presidente da Comissão de Saúde, que promoveu o encontro, Roberta Arraes ressaltou papel da entidade. “Quatro crianças e adolescentes são estupradas por hora. Centro defende mulheres mais vulneráveis”, frisou. Foto: Giovanni Costa

Criado como maternidade, em 1946, o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), localizado no bairro da Encruzilhada (Zona Norte do Recife), tornou-se referência no País em atendimento de mulheres e meninas vítimas de violência e com gestações de alto risco. O trabalho desenvolvido na unidade, que faz parte do Complexo Hospitalar da Universidade de Pernambuco (UPE), foi tema de debate virtual promovido nesta quarta (19) pela Comissão de Saúde.

Proposto pelo deputado Aluísio Lessa (PSB), o encontro ocorreu alguns dias após o hospital ter sido alvo de manifestação convocada por grupos político-religiosos contrários à interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos, vítima de estupros cometidos pelo tio desde os 6 anos de idade. A maioria dos participantes – deputados e gestores – externou apoio ao Cisam.

O episódio aconteceu no último domingo (16), no momento em que a equipe médica  aguardava a chegada da criança, que foi transferida do Espírito Santo para se submeter ao aborto autorizado pela Justiça. A menina veio para Pernambuco depois de o Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes, em Vitória, capital capixaba, ter se recusado a realizar o procedimento. 

A discussão contou com a presença do diretor do Cisam, Olímpio de Moraes. “Toda essa confusão só resultou na exposição da menina. O caso ganhou repercussão internacional e, pela segunda vez na vida, estou sendo atacado por exercer a medicina humanizada”, lamentou. Em 2009, o médico foi excomungado pelo então arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, após fazer um aborto legal em uma criança de 9 anos grávida de gêmeos.

ATUAÇÃO – “Caso ganhou repercussão internacional e, pela segunda vez na vida, estou sendo atacado por exercer a medicina humanizada”, lamentou o diretor do Cisam, Olímpio de Moraes. Foto: Giovanni Costa

Na avaliação do diretor, o Cisam é motivo de orgulho para o Estado. “Fiquei muito triste com o que ocorreu. Era necessário sigilo, pois a criança estava sofrendo com barreiras colocadas por forças políticas no Espírito Santo, a ponto de o secretário de Saúde de lá ter de procurar ajuda em outro Estado”, relatou. Segundo Moraes, apesar de tudo ter sido feito de maneira discreta, houve vazamento de informações. “Fomos surpreendidos com o protesto. A menina, que chegou acompanhada da avó e de uma assistente social, foi recebida aos gritos de ‘assassina’ pelos manifestantes, que, além disso, tentaram invadir o hospital”, destacou.

O médico também disse que, ao tentar conversar com alguns participantes do ato, foi agredido. “Vivemos uma pandemia. Não estamos recebendo acompanhantes na unidade, como iríamos permitir que pessoas estranhas, mesmo sendo deputados, entrassem?”, indagou. Olímpio de Moraes ressaltou que o ambiente hospitalar precisa de silêncio, e os protestos duraram cerca de três horas. 

“Sempre exerci minha atividade de forma correta e é difícil ser ameaçado injustamente. Infelizmente, essas pessoas não se importam com a quantidade de mortes diárias em consequência de abortos inseguros, causados por gestações indesejadas. O Cisam vai continuar seu trabalho com amor e compaixão por essas mulheres”, concluiu. 

A presidente da Comissão de Saúde, deputada Roberta Arraes (PP), frisou que o debate é uma oportunidade de a população ter conhecimento sobre a importância do centro médico. “Quatro crianças e adolescentes são estupradas por hora no Brasil, e boa parte que engravida tem direito ao aborto legal. Sendo referência no atendimento às gestantes de alto risco, às crianças vítimas de violência sexual e doméstica e à população trans, o Cisam se tornou um defensor das mulheres mais vulneráveis. Parabenizo a equipe pelo comprometimento com o trabalho”, sublinhou. Em relação ao episódio do domingo, a parlamentar enfatizou que as pessoas desrespeitaram o direito da menina, atentando, inclusive, contra o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

TRABALHO – “Unidade de saúde existe há mais de 70 anos e tem como missão dar uma atenção diferenciada às mulheres atingidas pela violência”, disse Aluísio Lessa, que propôs a reunião. Foto: Giovanni Costa

Para Aluísio Lessa, é preciso enaltecer o trabalho da instituição, que realiza cerca de 30 mil atendimentos por mês. “O Cisam existe há mais de 70 anos e tem como missão dar uma atenção diferenciada às mulheres atingidas pela violência. A forma como eles acolhem permite que as vítimas consigam se sentir apoiadas e com mais força para dar prosseguimento a suas vidas”, pontuou.

O secretário estadual de Saúde, André Longo, também salientou o papel do centro médico no atendimento materno-infantil, em especial na gestação de adolescentes. Ele explicou que, graças à cooperação entre os entes estaduais, Pernambuco atendeu ao apelo da Secretaria de Saúde do Espírito Santo para realizar a interrupção da gravidez da menina. “Infelizmente, houve um vazamento de informações e o caso ganhou notoriedade, além de resultar em constrangimento para a vítima. Repudiamos o que aconteceu, ainda mais em tempos de pandemia”, declarou. Longo assinalou que o Estado cumpriu uma obrigação legal, pois a criança estava protegida pela legislação brasileira.   

“O enfrentamento à violência contra a mulher pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é uma conquista e Pernambuco se coloca na frente de outros Estados por ter um serviço do porte do Cisam”, disse a secretária estadual da Mulher, Sílvia Cordeiro, que também elogiou o trabalho do diretor Olímpio de Moraes. A gestora considerou o episódio ocorrido no domingo como emblemático, justamente no mês em que a Lei Maria da Penha completa 14 anos.

“Uma menina vivendo numa condição de estupros recorrentes, que culminam com uma gravidez, é uma situação inaceitável e lamentável. A Secretaria estará sempre apoiando as mulheres que são vítimas do machismo estrutural da sociedade”, prosseguiu Sílvia Cordeiro. Ela também sugeriu que a Alepe crie uma frente parlamentar permanente para combater a cultura do estupro.

DEFESA – Clarissa Tércio disse ter ido ao hospital para impedir a violação do direito de uma criança nascer. “Defendo penas mais duras para o estuprador, mas o que estava em questão era a vida de um feto com 23 semanas.” Foto: Giovanni Costa

A vice-reitora da UPE, Socorro Cavalcanti, externou apoio à atuação de toda a equipe do Cisam em prol da saúde da mulher. “As manifestações nos deixaram indignados porque os profissionais estavam ali cumprindo uma obrigação legal”, lembrou, acrescentando que a instituição não iria se negar a fazer o procedimento, e a universidade se orgulha do trabalho desenvolvido por aquela unidade de saúde. 

Um dos parlamentares que foram ao Cisam no último domingo, Joel da Harpa (PP) explicou que esteve no local para descobrir por que o aborto foi feito em Pernambuco. “Recebi denúncias de que o hospital do Espírito Santo não fez o procedimento porque a gravidez estava num estágio adiantado, o que não é amparado pela legislação. Queríamos garantir os direitos da criança e do feto, mas não pudemos entrar na unidade de saúde.” Joel afirmou que quer acesso à documentação relativa ao caso, bem como saber quem arcou com os custos da viagem. “Vou fazer um Pedido de Informações ao Governo do Estado”, concluiu. 

A deputada Clarissa Tércio (PSC) ressaltou ter ido ao hospital para impedir que houvesse a violação do direito de uma criança nascer. “Defendo penas mais duras para o estuprador, mas o que estava em questão era a vida de um feto que já tinha 23 semanas e pesava 600g. Foi uma coisa vergonhosa”, expressou. A parlamentar também comentou que a eficiência da rede pública de saúde do Estado para com as mulheres é variável. “Para realizar um aborto foi tudo muito rápido, mas conheço pessoas que tentaram fazer partos cesarianos e não conseguiram”, frisou.

Pastor Cleiton Collins (PP) enalteceu o trabalho do Cisam e contou que esteve no local para se informar sobre o fato. “Foi um caso muito triste, mas o mais importante é preservar a dignidade da criança. Minha preocupação foi querer ajudar e ouvir, jamais hostilizar a menina ou os médicos”, assegurou.   

PREOCUPAÇÃO –  “Foi um caso muito triste, mas o mais importante é preservar a dignidade da criança. Quis ajudar e ouvir, jamais hostilizar a menina ou os médicos”, assegurou Pastor Cleiton Collins. Foto: Giovanni Costa

Além de registrarem apoio ao centro médico, Simone Santana (PSB) e João Paulo (PCdoB) repudiaram a manifestação. “Tenho orgulho da instituição e enalteço a equipe, que realiza um atendimento humanizado e de excelência. Que o ocorrido sirva para que haja o fortalecimento desse tipo de serviço no País”, frisou a socialista. “Eu me solidarizo com a equipe pela forma séria como conduz a unidade, mas lamento o fato de alguns deputados terem envergonhado a Assembleia. Não podemos usar aspectos ligados a conceitos ou religiões para desrespeitar a legislação, os trabalhadores e a criança, que foi tratada como uma assassina. A Casa vai ter de se posicionar sobre o episódio”, acredita o comunista. 

“O Código Penal brasileiro é de 1940 e excetua de punição o aborto por estupro, sem determinar idade ou semana gestacional”, informou Teresa Leitão (PT). A deputada também salientou que o ECA protege igualmente a menina, pois, no Artigo 17, declara que “é dever de todos zelar pela dignidade de crianças quando em situação de atos de violência, vexatórios ou constrangedores”. 

A parlamentar lamentou o fato de a criança, além de ter tido uma vida permeada pela violência, ainda passar por um constrangimento como o que ocorreu no hospital. “Tudo foi feito com a finalidade de preservar a identidade da menina, e a Secretaria de Defesa Social precisa descobrir quem realizou o vazamento das informações”, cobrou a petista.

Projetos – Antes do debate, a Comissão de Saúde realizou Reunião Ordinária, quando distribuiu oito proposições e aprovou outras três matérias. Entre as acatadas, estava o substitutivo ao Projeto de Lei nº 533/2019, do deputado Romero Sales Filho (PTB), que inclui cigarros eletrônicos e equipamentos na lista de produtos fumígenos que devem ser consumidos em local destinado a esse fim. O relator da proposta foi o deputado Isaltino Nascimento (PSB). A proposição também recebeu aval da Comissão de Administração Pública pela manhã.