Gabriela Bezerra
Apesar de concentrar menos de 20% da população do Estado, Recife detém quase 71% do quadro médico pernambucano. O cenário é dos mais contrastantes do País, trazendo à reflexão questões que se iniciam ainda na formação profissional. O surgimento de novas faculdades também gera receio quanto à incorporação dos estudantes à estrutura médico-hospitalar.
“Enquanto os cursos de medicina se multiplicaram, a rede de saúde praticamente não cresceu. Pelo contrário: dados recentes mostram que, do ponto de vista dos campos de prática na atenção primária, ela se retraiu”, explica o coordenador do curso de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Sílvio Caldas (ver entrevista ao final), indicando um cenário de prejuízo na formação profissional.
O estudante Paulo Vítor Carvalho, que preside o Diretório Acadêmico de Medicina da UFPE, conta que a situação preocupa o grupo. “Alunos de faculdades sem hospital próprio têm realizado atividades extracurriculares em unidades que já atendem a demanda de outras instituições de ensino. A questão é que não tem lugar para todo mundo”, pontua.
Presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremepe), André Dubeux acredita que a situação tem dificultado o acesso à prática médica. “Recentemente, o primeiro lugar na residência médica de Tocoginecologia não tinha presenciado sequer um parto normal durante a graduação”, criticou. O cenário motivou, em abril, a realização de um debate promovido pela Comissão Especial que avalia a situação dos estágios em Pernambuco.
A questão pode repercutir também nas residências médicas, aponta a coordenadora do curso de Medicina da Universidade de Pernambuco (UPE), Dione Maciel: “No ano passado, tivemos cerca de 1.100 formados para 800 vagas. E o número de egressos vai aumentar cada vez mais nos próximos anos, com a conclusão das turmas de faculdades novas”.
Por outro lado, a interiorização do atendimento médico – um dos objetivos da abertura de cursos de graduação – ainda está distante. “Oferecer faculdades no Interior não fixa o profissional. O que funciona é ter uma rede de saúde”, avalia Dione. “Acredito que a interiorização das residências médicas seria mais eficiente nesse sentido.”
De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde, Pernambuco já segue essa tendência. “Temos feito esforço para melhorar a qualidade de assistência no Interior, formando cinturões de atendimento por meio de concursos regionalizados. Até porque estudos mostram que, quanto mais perto o paciente está da rede, maior a chance de ele concluir o tratamento”, frisa a secretária executiva de Gestão do Trabalho e Educação, Ricarda Samara.
Desigualdade – O cenário de concentração nas capitais se repete pelo País (ver quadro). Amazonas e Sergipe encabeçam o ranking, sendo o estado nordestino aquele com maior distorção na razão de médicos por mil habitantes: a média é de 0,19 fora da capital, contra 5,44 em Aracaju.
A relação entre a concentração de profissionais e a ausência de interiorização das faculdades é significativa. Manaus, que conta com 93,1% dos médicos do Estado, abriga também as três faculdades amazonenses de medicina. Em Santa Catarina, a situação é diferente: fica em Florianópolis apenas um dos 13 cursos oferecidos.
Novo curso
No último mês de abril, o Ministério da Educação suspendeu a criação de cursos de medicina por cinco anos. Em Pernambuco, a faculdade mais recente iniciou a primeira turma em fevereiro deste ano, com 50 alunos. Outra será formada no segundo semestre. “Estamos chegando agora, mas o grupo já tem uma bagagem de muitos anos em Aracaju(SE) e Maceió(AL)”, conta Evelin Siqueira, representante do Departamento Acadêmico e Financeiro da Faculdade Tiradentes, em Jaboatão dos Guararapes (RMR).
A instituição tem parceria com a prefeitura para Programa de Integração do Ensino da Saúde da Família. “Desde o primeiro semestre, os alunos frequentarão postos de saúde, fazendo atendimento à comunidade. Caso seja necessário, também se buscará parcerias com o Governo Estadual para ampliar o acesso à rede de saúde”, explicou Evelin.

ANÁLISE – Quantidade de cursos no interior aumentou, porém “concentração de cursos na Região Metropolitana ainda é gritante”. Foto: Acervo Pessoal
Obstáculos para interiorizar
Coordenador de Medicina da UFPE, Sílvio Caldas comenta distorções na distribuição de médicos e aponta caminhos.
Quais os principais desafios na formação médica hoje?
É aliar a competência técnica a uma formação holística e humanista. Formar um profissional eficiente, mas sobretudo ciente do seu papel como agente de transformações sociais e como parte de um sistema de atenção integral à saúde. Hoje, demanda-se um profissional também atento ao contexto psicossocial e ambiental em que se desenvolve o processo saúde-doença.
Existe distorção na quantidade de generalistas e especialistas, tendo em vista as necessidades do País?
Acredito que sim. A procura por uma ou outra especialidade é definida por dois fatores: vocação pessoal e oportunidade de mercado. Às vezes, um ou outro desses fatores atua de maneira isolada, mas, normalmente, os dois agem em conjunto. O problema é que, na medicina, nem sempre o mercado reflete as demandas da sociedade. Na esfera pública, sim, mas na privada, as oportunidades podem depender das articulações dessa ou daquela especialidade com os convênios, do surgimento de novas tecnologias e por aí vai.
Como avalia o fato de a maioria das faculdades de medicina estarem na RMR?
Do ponto de vista relativo, já houve um avanço. Antes tínhamos 100% dos cursos na capital. A política de interiorização das universidades é, a meu ver, acertada. Primeiro, porque a presença da universidade será sempre um polo de atração de investimentos e impulsionador da economia local, além de representar um agente de fortes mudanças sociais e culturais. Depois, porque estabelece um vínculo do aluno com a região, o que estimula a radicação desse médico no Interior. Mas a concentração de cursos na Região Metropolitana ainda é gritante.
De que forma garantir maior presença de médicos em outras regiões?
Essa é uma questão difícil de ser resolvida por uma política única. Não são só os médicos que se concentram na capital. Existe uma tendência de concentração progressiva das pessoas nas zonas urbanas. É preciso tornar a vida nas cidades menores do Interior mais convidativa tanto do ponto de vista de acesso aos bens e serviços, quanto das oportunidades de trabalho.
Como tem visto o surgimento de novos cursos de medicina?
Há cerca de 15 anos, poderia haver a necessidade. O problema é que houve um incremento vertiginoso de faculdades, sem, que eu saiba, um debate responsável e isento com todas as entidades envolvidas. Não se sabe ainda a repercussão desse aumento, que, muitas vezes, vem atender a interesses outros que não a melhoria da assistência médica à população. Vejo como maior problema o impacto que isso traz para a formação dos novos médicos. A disputa de estudantes por campo de treinamento nas unidades de saúde resulta em prejuízo para a formação de todos. É imprescindível que novos cursos só sejam abertos com a total garantia de ampliação dos campos de prática na mesma proporção.