André Zahar e Raero Monteiro
Muito antes de o primeiro computador pessoal ser lançado, nos anos 1970, ou de a internet começar a expandir-se pelo mundo, na década seguinte, a urna eletrônica já existia como uma ideia na cabeça dos brasileiros. Em 1932, o primeiro Código Eleitoral falava do “uso das máquinas de votar”, sequer inventadas.
Após uma série de protótipos testados nos anos seguintes, elas foram efetivamente implantadas a partir de 1996. Hoje, são o componente mais conhecido de um sistema de votação 100% informatizado e com reconhecidos mecanismos de auditoria, segurança e confiabilidade.
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Nas 11 eleições realizadas nos últimos 22 anos, todos os votos foram registrados e contabilizados sem intervenção humana, o que diminuiu consideravelmente o risco de fraudes. Mas nem sempre foi assim: desde o Império (1824-1881), há inúmeros registros de burlas nas diversas etapas de processos eleitorais feitos no País.
Adulteração de atas e casos de cidadãos votando em várias urnas, por exemplo, já foram fatos corriqueiros. Veio daí essa ideia de que um engenho mecânico que reduzisse a ingerência humana poderia ajudar a garantir a legitimidade do pleito.
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Evolução
Os primeiros exemplares de máquinas de votar começaram a ser analisados pela Justiça Eleitoral em 1937. Onze anos depois, o telegrafista Raymundo Silva solicitou a patente do equipamento chamado de Televoto, uma mistura de telefone e máquina registradora, combinada a tecnologias de televisão e de câmera fotográfica automática.
Por meio desse aparelho, o eleitor votaria vendo a foto, o número e o partido do candidato. Entretanto, o desenvolvimento tecnológico pretendido não chegou a ser alcançado para que o Televoto fosse implantado à época.
A urna eletrônica que usamos hoje foi concebida entre os anos de 1995 e 1996, a partir do projeto técnico feito por um grupo de especialistas em informática, eletrônica e comunicações. Participaram desse trabalho não apenas a Justiça Eleitoral, mas também as Forças Armadas, os ministérios da Ciência e Tecnologia e das Comunicações, o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Como as urnas eletrônicas não estão conectadas à internet, é praticamente impossível hackeá-las.
Como as urnas eletrônicas não estão conectadas à internet, é praticamente impossível hackeá-las.
A substituição das cédulas de papel pelas urnas eletrônicas começou nas eleições municipais de 1996, chegando a 37 cidades. Dois anos depois, o voto eletrônico foi utilizado pela primeira vez em eleições nacionais, alcançando 58% do eleitorado.
As disputas municipais de 2000 foram as primeiras em que todos os votantes usaram a urna eletrônica. Foi o fim das mesas de contagem, quando a totalização das cédulas poderia demorar dois ou mais dias para ser concluída. E, desde então, o resultado passou a ser proclamado algumas horas após o encerramento da votação.
Segurança
A professora de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Carina Barbosa Gouvêa relembra eventos graves ocorridos pouco antes da implementação da urna eletrônica. Em 1990, o Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas (TRE-AL) anulou os votos de 117 urnas da capital, Maceió, e de outros cinco municípios por evidências de fraude. Em 1994, pelo mesmo motivo, toda a disputa para deputados estaduais e federais no Rio de Janeiro foi anulada.
“A história eleitoral brasileira carrega consigo coronelismo, voto de cabresto, compra de votos, mapismo [fraude no lançamento de dados em mapas ou boletins de apuração] e eleição a bico de pena [fraude no preenchimento dos documentos oficiais, como folhas de votação]”, cita a autora do artigo Integridade e legitimidade da urna eletrônica no Brasil: um sinal de alerta. “Havia casos em que fiscais eleitorais até comiam votos na apuração”, conta.
No livro Eleições no Brasil: do Império aos dias atuais, o cientista político Jairo Nicolau pontua que “a adoção da urna eletrônica foi um passo decisivo para a extinção de fraudes eleitorais no Brasil, sobretudo as promovidas durante a apuração”. Além disso, dois dispositivos do novo modelo facilitaram o voto dos eleitores de baixa escolaridade: o uso de um teclado semelhante ao dos telefones e a apresentação da fotografia do candidato na tela após a digitação do número.
Auditoria
Todo o sistema informatizado pode ser fiscalizado e auditado em mais de uma dezena de eventos públicos realizados antes, durante e após as votações (ver quadro). É o que explica o secretário de Tecnologia da Informação e Comunicação do Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco (TRE-PE), George Maciel.
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“Mesmo com o fim do processo eleitoral, as urnas não são formatadas e ficam lacradas até o trânsito em julgado da eleição [quando todos procedimentos administrativos ou judiciais impugnando ou auditando a votação terminam de ser julgados]. Essas máquinas podem ser inspecionadas, se houver alguma contestação”, informa o gestor.
Mais de 70 países já enviaram delegações para conhecer a solução informatizada no Brasil. E esse sistema eleitoral já foi reconhecido como confiável por instituições nacionais e internacionais, públicas e privadas. Entre elas, Tribunal de Contas da União (TCU), Polícia Federal (PF), Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Departamento de Estado Americano, além de pesquisadores das universidades de Harvard e Sydney.
Mais transparência
Para os trabalhos deste ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou a Resolução nº 23.673/2022, que atualizou os procedimentos de controle e auditoria do sistema eletrônico de votação. O documento cita as entidades fiscalizadoras – públicas e da sociedade civil – autorizadas a participar de todas as etapas. Entre elas, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Polícia Federal, universidades e Forças Armadas. Essas instituições poderão desenvolver, inclusive, programas próprios de verificação de integridade e autenticidade dos sistemas eleitorais.
O Tribunal instituiu, ainda, a Comissão de Transparência das Eleições (CTE) e o Observatório da Transparência das Eleições (OTE) e aumentou o número de urnas submetidas ao teste de integridade (votação paralela). Três organismos internacionais também já se habilitaram a atuar como observadores do pleito: Parlamento do Mercosul (Parlasul), Organização dos Estados Americanos (OEA) e União Interamericana de Organismos Eleitorais (Uniore).
De acordo com George Maciel, em Pernambuco será testada a auditoria com a utilização de máquinas. “O robô fará o reconhecimento da cédula manual, usando inteligência artificial, e digitará na urna. Com isso, diminuirá a quantidade de humanos envolvidos no processo”, explica. “No futuro, poderemos ter só robôs auditando as urnas e auxiliando eleitores com mobilidade reduzida, para que possam exercer sua cidadania sem comprometer o sigilo do voto.”
A vulnerabilidade do papel
Nos últimos 20 anos, três leis federais buscaram, sem sucesso, restabelecer o voto impresso. A primeira delas ( Lei nº 10.408/02) foi revogada após uma experiência realizada com sete milhões de eleitores, na qual foram constatados transtornos como aumento de filas, atrasos na votação, falhas nas impressoras e maior percentual de urnas com defeito.
Outras duas (leis nº 12.034/09 e nº 13.165/15) foram declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por colocarem em risco o sigilo e a liberdade do voto. Em agosto de 2021, a Câmara dos Deputados rejeitou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com a mesma finalidade.
Citando o exemplo de Pernambuco – onde há mobilização de 7 milhões de eleitores e mais de 20 mil urnas eletrônicas –, Maciel expõe a vantagem do sistema informatizado não só para a segurança, mas também para a logística do processo. “Aqui no Estado, há mais de 80 mil mesários. Estabelecer um contingente como este para a contagem dos votos geraria uma série de fragilidades. O processo passou a ser eletrônico justamente para tirar a intervenção manual, na qual ocorriam as fraudes”, reafirma o gestor.
Imagens em destaque: Antônio Augusto/Ascom TSE (home e página de Notícias Especiais)
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