Ivanna de Castro
“Nunca vi São João / Sem foguete, sem fogueira / Tric-trac, ronqueira / Buscapé e balão / Sem adivinhação / Milho assado e canjica / Sem sanfoneiro, é futrica / Pra mim nunca foi São João”. Nos versos da canção São João sem futrica, Luiz Gonzaga aponta os itens que considera indispensáveis na grande festa do povo nordestino. Mas, ainda que não listados pelo Rei do Baião, outros elementos ajudam a formar esta celebração popular múltipla, que envolve as comunidades e compõe a identidade dos pernambucanos.
As quadrilhas, por exemplo, são responsáveis por trazer irreverência e animação. Algumas delas, no entanto, vão além da brincadeira e, graças a um organizado trabalho coletivo, garantem ao público espetáculos que chegam a custar R$ 40 mil. “São cerca de 90 pessoas dançando, mas há também aquelas que atuam no núcleo de figurino, na produção e na direção, assim como os profissionais que definem e trabalham o tema”, conta o pedagogo Perácio Gondim, coreógrafo de dois premiados grupos de quadrilha do Estado: a Junina Tradição, do Recife, e a Raio de Sol, de Olinda.
O valor é investido para criar lições lúdicas de história e cultura popular. “O grupo de Olinda trabalha, neste São João, o tema ‘Ventre. Chão. Sagração’, sobre a fertilidade do homem e da terra. Já a quadrilha da Tradição foi baseada no poema ‘Viagem a São Saruê’, do poeta Manuel Camilo dos Santos. O texto fala de uma cidade imaginária, onde há lagoas de mel e pedras de queijo”, revela o pedagogo, que busca envolver a comunidade com a temática. “Não é só dançar. Quando tratamos do xaxado, por exemplo, todos estudam onde surgiu o ritmo, como era o bando de Lampião e os costumes do grupo”, exemplifica.
A apresentação de 25 minutos é, segundo Gondim, o fim de um processo que movimenta a comunidade desde antes do Carnaval. “É muito compromisso, investimento e corre-corre. Todos os anos digo que, no seguinte, não vou mais coreografar para aproveitar a festa tranquilo. Só que não consigo. Comecei ainda criança e só o amor pode explicar isso”, diz ele, aos 43 anos. O envolvimento da comunidade com o São João também é apontado como um dos combustíveis da paixão do coreógrafo. “No mesmo grupo, temos a menina dançando e a mãe vendendo bolo e pipoca para ajudar nos custos. Tenho o maior orgulho de participar deste movimento”, acrescenta.
O sentimento de pertencimento comunitário e a vontade de preservar uma tradição criada ainda no século 19 são os principais motivos apontados pelo educador físico Ivan Marinho, de 53 anos, para explicar o envolvimento dele com o bacamarte. Marinho faz parte da Sociedade de Bacamarteiros do município do Cabo de Santo Agostinho (Região Metropolitana). “Em geral, os grupos são formados por filhos e netos de antigos bacamarteiros e há um forte sentimento de fraternidade entre os diferentes batalhões. Como é preciso confiança naquele que está ao lado atirando, nós passamos a nos enxergar como uma família”, conta.
O bacamarteiro explica que a tradição surgiu no Brasil após a Guerra do Paraguai (1864-1870), quando os soldados brasileiros, equipados com arma de fogo de cano curto e largo, deram tiros para comemorar o fim do conflito e o retorno às casas. Hoje, desfilam chefiados por um sargento e um comandante, com uniformes geralmente azuis e embalados pelo som do forró, do xaxado e, claro, dos tiros. “O som que sai da arma e a fumaça da pólvora geram um êxtase na gente. Essa atmosfera envolve os que acompanham os desfiles também”, descreve Marinho.
Outro som marcante no São João de Pernambuco é o provocado pelas batidas dos tamancos de madeira dos integrantes do grupo de coco Raízes de Arcoverde, surgido nesse município do Sertão. Cantora, Iran Calixto trabalha há 20 anos para manter viva a tradição impulsionada pelo tio, o Mestre Lula Calixto. “Em 1986, quando Ivo Lopes [um dos principais mestres do coco de Arcoverde] morreu, a tradição foi abandonada na cidade. Anos depois, meu tio, que fez parte do grupo dele, resolveu reavivar o coco, reunindo os parentes de Lopes, a família Gomes e a nossa”, recorda, explicando a origem do coletivo.
Além dos tamancos, o ritmo do coco, que mistura elementos indígenas, da cultura negra e do povo sertanejo, é marcado ainda pela cadência do triângulo, pandeiro, surdo e ganzá. “Nossa cultura é conhecida internacionalmente, mas precisamos de mais apoio para mantê-la”, cobra, lembrando das dificuldades que enfrentaram para pagar o aluguel da antiga sede, quitado graças a uma campanha de doações. “Com a crise econômica, o primeiro a sofrer é o artista da tradição popular”, lamenta, destacando o São João como o grande momento de valorização do folguedo.
Cantor dos sucessos Ana Maria e Tamborete de forró, Santanna defende que os artistas e os ritmos do Nordeste sejam priorizados na programação do ciclo junino. “Graças à luta de Gonzaga para valorizar a cultura sertaneja, uma festa que durava dois dias passou a se estender por um mês. São os nomes dessa tradição, portanto, que devem ser protagonistas”, diz o cantador, criticando a extensão do espaço concedido, nessa época, a outros ritmos, como o sertanejo. “Eles devem ser os convidados e nós os anfitriões. Muitas vezes isso se inverte”, observa.
Cearense com título de cidadão pernambucano concedido pela Alepe, Santanna resume o sentido do São João para ele: “É um projeto de vida não só para mim, mas para toda a nação nordestina”. Destaca também o impacto socioeconômico dos eventos. “Movimenta uma cadeia produtiva grande, que inclui desde empresários até o pipoqueiro. A minha contribuição é fazer com que as pessoas, graças ao forró, saiam dos shows mais felizes do que entraram”, conclui.
Tradição viva
Historiador da Universidade de Pernambuco (UPE) e organizador do livro Nos Arraiais da Memória 2: as quadrilhas juninas escrevem diferentes histórias (editora Fundação de Cultura Cidade do Recife), Mário Ribeiro defende a valorização das tradições locais, mas alerta que mudanças nas práticas populares são inevitáveis. Para exemplificar, conta a história das quadrilhas, nascidas nas cortes europeias para celebrar aniversários e casamentos e trazidas ao Brasil pela família real portuguesa, em 1808.
“Com o fim do Império e início da República, essa prática foi considerada obsoleta e expulsa das cidades. No Interior, é então ressignificada pelo homem do campo e o São João da corte passa a ser celebrado para comemorar o grande momento do homem rural: a fartura da colheita.” Depois, continua Ribeiro, uma nova mudança: “O homem urbano retoma a celebração, e, para caracterizá-la como uma festa matuta, cria símbolos e personagens caricaturados do homem do campo”, explica.
As expressões culturais são bens vivos e não param de se reinventar. Isso porque são feitas por pessoas, cujos sentidos e necessidades de existência se alteram com o passar das gerações.” Mário Ribeiro, historiador
Segundo o historiador, essas “ressignificações” são naturais e não devem ser vistas como descaracterização da tradição. “As expressões culturais são bens vivos e não param de se reinventar. Isso porque elas são feitas por pessoas, cujos sentidos e necessidades de existência se alteram com o passar das gerações”, analisa. Ele critica, no entanto, a oferta de cachês e espaços maiores para expressões culturais já muito valorizadas economicamente em detrimento daquelas produzidas pela comunidade, que lutam para manter as práticas.
Preocupado com este desequilíbrio em festas de São João, o Governo do Estado, por meio da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), desenvolve uma política de suporte às tradições tipicamente pernambucanas nas festas de junho. Para isso, lança um edital de contratação de artistas locais que atuem com cultura popular, tradição junina, forró pé de serra ou música popular brasileira.
Após a seleção, o Poder Executivo custeia os cachês para que os artistas se apresentem nas festas promovidas pelos municípios. “Com essa convocatória, contribuímos para a programação das diferentes cidades e, assim, investimos na preservação da essência das tradições tipicamente pernambucanas”, conclui Márcia Souto, presidente da Fundarpe.