“As bandeiras de 1817 permanecem atuais”

Em 03/03/2017 - 11:03
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ANÁLISE – Papel do movimento pernambucano foi subdimensionado na história, acredita Carvalho. Foto: Jarbas Araújo

Para o historiador Marcus Carvalho, professor da Universidade Federal de Pernambuco, a igualdade perante a lei defendida pela “Revolução dos Padres” segue na pauta política do Brasil.

 

Tribuna Parlamentar – Que fatores em Pernambuco favoreceram a eclosão do movimento?

Marcus Carvalho – Há muitas questões envolvidas. Os historiadores destacam a econômica: a decadência do algodão, depois que terminou a guerra entre a Inglaterra e os Estados Unidos. A concorrência americana suplantou nossa produção e houve queda nas exportações; foi um momento de crise econômica. Também o aumento de impostos e a decadência política do Nordeste em relação ao Sul e ao Sudeste, já que a Corte [Portuguesa, em 1808] se estabeleceu no Rio de Janeiro. Além de dívidas que existiam, havia décadas, com a Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba. E, ainda, as questões intelectuais: aqui, por conta do Seminário de Olinda, era um verdadeiro viveiro de ideias da Ilustração. Havia outras insatisfações: nas casernas, com comandantes e oficiais muito rigorosos, e, para o homem pobre e livre brasileiro, pela falta de perspectiva de ascender socialmente. Em 1817, havia insatisfações no Brasil inteiro, mas a revolução ocorre aqui porque Pernambuco estava menos policiado. No entanto, 1817 não é bem um movimento pernambucano: emissários foram presos tentando rebelar a Bahia. A ideia era rebelar todo o Brasil. Eu acho que a Revolução de 1817 é mais um movimento de história da América Latina. Ela parece muito com a independência da Venezuela, da Colômbia, de vários países da América do Sul. Começa com movimentos de gente do baixo oficialato e de pessoas que não são da nobreza – advogados, intelectuais.

TP – Que república os revolucionários queriam instalar em Pernambuco?

MC – É importante chamar o movimento de “revolução”. Primeiro porque os participantes chamavam assim. A historiografia posterior começou a tratar como “insurreição”, o que é muito curioso, porque o movimento constitucionalista militar de São Paulo é chamado de Revolução Constitucionalista, e o golpe de Estado que Getúlio Vargas deu, de Revolução de 30. No entanto, um movimento que pretendia derrubar a Monarquia e instituir um Brasil independente sob uma república na qual os cidadãos teriam deveres e obrigações, chamam de “insurreição”. Foi derrotada, mas era uma revolução republicana, com ideais pautados pela Revolução Americana e pela Revolução Francesa. O principal deles é a igualdade perante a lei.

TP – A Revolução de 1817 previa uma abolição da escravidão “lenta, regular e legal”. Esse projeto era viável?

MC – Nessa época, podia-se falar de abolicionismo e emancipacionismo. A emancipação, onde houve, era lenta e gradual – foi assim na América Hispânica e nas colônias inglesas. Fora isso, as duas únicas abolições repentinas geraram guerras civis, no Haiti e nos Estados Unidos. A abolição gradual era viável, sim, mas antecipava o fato em 50 anos. O que só começa em 1850, com o fim do tráfico de escravos, os revolucionários queriam iniciar antes. Tanto que a Confederação do Equador, em 1824, que reunia jovens de 1817, teve como uma das primeiras medidas abolir o tráfico negreiro. Isso mostra a sinceridade dessas pessoas que, sete anos antes, anunciavam que a escravidão era imoral e deveria acabar. É a primeira vez que um governo instituído fala isso. Às vezes, a gente critica 1817 porque não era abolicionista. Mas quem era abolicionista nessa época? Havia escravidão em toda a América, menos no Haiti, onde havia servidão. Na Europa inteira havia servidão, inclusive no interior da França. Na Inglaterra não tinha, mas quais eram as condições de trabalho de um irlandês em 1817? O Oriente era escravagista, a Europa Oriental tinha formas de servidão muito próximas da escravidão, e, na África, havia sociedades escravistas. Pensar que 1817 só funcionaria se fosse abolicionista é anacrônico. No contexto mental da época, ser emancipacionista era avançadíssimo.

TP – Como as camadas populares participaram da Revolução de 1817?

MC – Todo movimento político tem diferentes motivações. O que as pessoas querem? Nós não temos fontes coevas do que os negros ou os libertos pensavam, então é muito difícil afirmar qual era o querer deles em 1817. Mas devia haver alguma coisa, porque, à medida que o movimento avança, uma imensa quantidade de negros e pardos participa, e a defesa final da Capital tem um comandante do batalhão dos Henriques [regimento formado por negros e mestiços] defendendo o Forte das Cinco Pontas e outro oficial desse batalhão defendendo a Fortaleza do Brum. Eles estavam arriscando a vida, lutando por aquele movimento. Portanto, deveriam acreditar que, em longo prazo, aquilo ia trazer algum benefício popular, ou não pegariam em armas. Também é interessante analisar o combate historiográfico: quando vem a Independência do Brasil, a Corte está no Rio de Janeiro. É óbvio que Dom Pedro I não poderia ter colocado 1817 como grande movimento nacional. Ele teve que escolher como símbolo da nacionalidade um cara que morreu numa inconfidência – ou seja, apenas uma conspiração, no terreno das ideias –, em Minas Gerais, que tinha uma ligação muito forte com o Rio de Janeiro. Então ele escolheu Tiradentes. Na República Velha, há um grande predomínio da “política do café-com-leite” [nome que se dá ao acordo firmado entre oligarquias estaduais e Governo Federal para que os presidentes da República fossem escolhidos entre políticos de São Paulo e Minas Gerais], assim não se podia escolher um movimento numa província pobre. Mas, se fôssemos ser mais corretos, o grande símbolo da nacionalidade é ou a Revolta dos Alfaiates, da Bahia (1796), ou a Revolução Pernambucana de 1817. Ou as duas. Mas isso foi tirado do Nordeste.

TP – Por que a Revolução de 1817 foi derrotada?

MC – A derrota de 1817 é da classe proprietária. Os grandes senhores de engenho e proprietários de escravos se sentiram ameaçados, começaram a retirar o apoio. Tem uma frase muito famosa do padre Muniz Tavares: “Em 1817, os pernambucanos aprenderam a traição”. Não a traição à Coroa, mas a traição entre um e outro, um denunciando o outro. A historiografia mais antiga quer enaltecer os senhores de engenho que fizeram rebeliões. Na realidade, esse grupo se divide, porque a Revolução toma um ar mais radical. Tenho até dúvidas se, em 1817, esses senhores realmente queriam uma república.

TP – O que nós trazemos de 1817 para a atualidade?

MC – Uma das coisas mais bonitas da Revolução de 1817 é um documento instituindo o tratamento por “vós” no lugar de “vossa mercê”. O “vossa mercê”, nessa época, passa uma ideia não só de respeito, mas de deferência. Significa que ele manda em mim, que eu sei que ele manda em mim, que ele sabe que ele manda em mim. O “vós” é respeitoso. É como o “senhor” hoje em dia. E até o modo como a nova lei foi divulgada é muito interessante: em forma de “bando”, um documento para ser lido ao som de taróis [instrumentos de percussão em forma de caixa]. Não havia rádio nem televisão. Eles saem à rua, param em cada esquina e leem o documento público que diz: acabou esse negócio de “vossa mercê”, todo mundo é “vós”. É o começo da igualdade perante a lei. E isso é muito atual, porque a gente ainda está lutando por isso: cidadania, direitos iguais. São as mesmas lutas. O Brasil ainda não chegou à Revolução de 1817. As mesmas bandeiras ainda estão na pauta.