Visibilidade para combater intolerância religiosa

Em 25/11/2016 - 10:11
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REALIDADE – Principais vítimas, adeptos de crenças de matriz africana denunciam racismo, cobram respeito e mostram educação como caminho. Foto: Breno Laprovitera

O mês de novembro celebra o Dia da Consciência Negra (20/11). A data também remete a um tema recorrente e sensível à comunidade afrobrasileira: a intolerância religiosa. No último dia 1º, o Recife recebeu a décima edição da Caminhada dos Terreiros, quando milhares de seguidores e simpatizantes de religiões de matriz africana percorreram as ruas do Centro para exigir reconhecimento e respeito aos seus credos.

A articulação desses grupos tem justificativa, uma vez que são eles os principais alvos de preconceito religioso no Brasil. De acordo com o Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa (2011-2015) da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, 27% das denúncias recebidas nesse período tiveram como vítimas os adeptos de religiões de origem africana, como umbanda e candomblé, por exemplo. Em segundo lugar estão os fiéis de igrejas evangélicas (16%), seguidos por católicos (8%).

O documento mostra, também, que os relatos de violência estão se tornando mais frequentes: 2015 registrou um número 273% maior de queixas que em 2014. Este, por sua vez, apresentou 35% mais ocorrências que em 2013. Os dados, no entanto, ainda são considerados baixos, com 1.031 denúncias contabilizadas em cinco anos. Os integrantes de terrreiros, porém, não observam um ambiente de tolerância religiosa no País, mas a subnotificação dos casos.

Em Pernambuco, por exemplo, foram registradas dez queixas em 2015 e, até setembro passado, houve somente quatro denúncias. Pai Ademir, babalorixá do Terreiro Ilê Axé Ofárómin, no Recife, é uma vítima que ficou fora da estatística, apesar de ter sofrido agressão neste ano: duas janelas da casa dele, localizada sobre o espaço religioso, foram apedrejadas após uma cerimônia de candomblé que liderava.

“Estávamos fazendo nossa festa para Pombagira quando minha mãe, que mora ao lado do terreiro, recebeu uma ligação anônima. A pessoa falou que era para a cerimônia acabar naquela hora, senão seria encerrada debaixo de tiro. Mais tarde, quando cheguei em casa, as janelas da minha cozinha estavam quebradas”, conta. O líder religioso diz que não fez registro da ocorrência porque não conseguiu identificar os agressores.

Em algumas situações, mais difícil do que detectar o autor da violência é se reconhecer como vítima de preconceito religioso. “A discriminação acontece, muitas vezes, de forma mascarada”, explica Mãe Elza, líder do Terreiro Ilê Axé Egbé Awo, no Recife, e presidente do Conselho Estadual de Políticas de Igualdade Racial. “Nossa identidade religiosa está exposta em nossas vestimentas. Quando ando nas ruas, alguns se aproximam para pedir reza, conselho; mas há também aqueles que nos chamam de adoradores do diabo e nos entregam panfletos de outras religiões. O preconceito às vezes está encoberto em promessas de salvação em outra crença”, observa.

O filho de santo Dênis Yago, 19 anos, conheceu o Terreiro de Pai Ademir no ano passado e, desde então, garante já ter “se acostumado” com cenas cotidianas de preconceito. O jovem afirma ser comum pessoas se afastarem quando está usando bata e eketé (chapéu) em lugares públicos. “Geralmente, quando ando de ônibus, o assento ao meu lado fica vazio. Eu já não ligo, mas acho que as pessoas precisam conhecer nossa religião”, acredita.

Gilbraz Aragão, doutor em Teologia e coordenador do Observatório Transdisciplinar das Religiões da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), acredita que a mudança de atitude passa pelo esclarecimento. “Cabe à comunidade educativa analisar o papel das tradições religiosas na estruturação e na manutenção das culturas, rompendo com relações de poder que encobrem discriminações e preconceitos”, analisa o professor.

Na avaliação de Marta Almeida, representante do Movimento Negro Unificado e técnica de Política de Igualdade Social do Estado, o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas redes pública e particular de ensino do País ainda não é efetivamente aplicado, apesar de ser uma obrigação das escolas desde a Lei Federal nº 10.639, de 2003. “Só com o conhecimento das nossas tradições e origens, conseguiremos enfrentar essa discriminação que maltrata e mata. É difícil vivermos com perseguição à nossa vestimenta, à nossa maneira de falar e agir e, ainda, à nossa fé”, lamenta.

Segundo a Secretaria Estadual de Educação, Pernambuco já está se articulando para implementar o ensino da disciplina, que também está presente no Plano Estadual de Educação (Lei n° 15.533/2015). Em setembro, foi lançado o Plano de Institucionalização do Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no Estado. “O documento elenca uma série de ações de apoio às escolas, entre as quais formação continuada, produção de material didático e organização de grupos de discussões”, explica Vera Braga, gerente da Secretaria. “O preconceito existe e a comunidade precisa refletir sobre ele.”

Racismo e Religião – “A intolerância às religiões de matriz africana é fundamentada no racismo. Devido ao nosso passado escravista, tudo o que se relaciona à cultura negra é desprezado e, até mesmo, demonizado”, analisa o teólogo Gilbraz Aragão. Para o estudioso, elementos de religiões africanas foram, historicamente, apropriados e ressignificados por outras crenças. “Algumas igrejas cristãs utilizam rituais praticados em terreiros, mas mudam seus nomes e invertem os valores. O transe que ocorre em rituais de candomblé, por exemplo, é realizado em certos cultos, numa situação de menosprezo, como o exorcismo de pessoas endemoniadas”, compara.

“É preciso que as pessoas tenham conhecimento sobre a nossa tradição, porque nos foram colocados estigmas equivocados, como adoração ao satanás. Isso não está nos nossos cultos e não pertence ao nosso credo”, ressalta Mãe Elza, que faz um apelo: “Defendo que qualquer pessoa professe sua religião com toda a sua fé. E que isso também seja garantido a nós, seguidores de religiões de terreiros”.

De acordo com Aragão, para enfrentar a intolerância religiosa e atender ao pleito de Mãe Elza, é fundamental a defesa constante do Estado Laico. “O Poder Público deve controlar o proselitismo religioso, regrar o uso de símbolos sagrados nos espaços públicos, além de não submeter questões legais, como a educação, a interesses de alguma religião”, encerra.

 

*Esta matéria faz parte do jornal Tribuna Parlamentar de Novembro/2016. Confira a edição completa.