A longa caminhada por direitos: povos indígenas de Pernambuco obtêm reconhecimento legal, mas ainda enfrentam conflitos e preconceitos

Em 09/08/2016 - 07:08
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TRADIÇÃO - Uma vez por ano, Xukurus do Ororubá caminham por aldeias de Pesqueira em direção à Igreja da Vila de Cimbres. Foto: Rinaldo Marques

TRADIÇÃO – Uma vez por ano, Xukurus do Ororubá caminham por aldeias de Pesqueira em direção à Igreja da Vila de Cimbres. Foto: Rinaldo Marques

*Por André Zahar

Dia 2 de julho, 7h30. Após uma caminhada de cerca de 19 quilômetros iniciada cinco horas antes, na qual partiram de Canabrava, em Pesqueira (Agreste), e percorreram outras sete aldeias, cerca de 200 índios do povo Xukuru do Ororubá sobem a ladeira da Igreja de Nossa Senhora das Montanhas, na Aldeia da Vila de Cimbres, também no município. Alguns chegam paramentados com adereços feitos de palha de coco catolé – barretinas na cabeça e saias – e colares de sementes. Empunham varas de cana-de-açúcar e instrumentos como maracás e jupagos (1*). O som no povoado, fundado no século 17, mistura os sinos da paróquia, as notas sopradas no memby (2*) e as palavras de ordem entoadas pelo bacurau (3*) em homenagem à Mãe Tamain, associada a Nossa Senhora das Montanhas e considerada protetora do povo Xukuru.

A celebração – que se estende ao longo do dia com uma missa, uma procissão e o toré (4*) – mistura espiritualidade e cultura, mas possui  também contornos políticos. “Nessa caminhada, fazemos um reencontro com nossos ancestrais, que chamamos de encantados, e uma reflexão sobre a história de vida e a luta do povo Xukuru pela reconquista da terra, por direitos e pela preservação do espaço sagrado”, explica o cacique Marcos Xukuru, 37 anos. “Através dos rituais sagrados, conseguimos manter vivos nossos costumes, crenças e tradições”, defende.

Hoje, os Xukurus se encontram numa área de 27.555 hectares, homologada em 2001, abrangendo parte das cidades de Poção, também no Agreste, e Pesqueira. Até o reconhecimento desse território indígena, porém, a disputa pela posse da terra motivou conflitos com fazendeiros e políticos locais. Os embates resultaram na morte, em 1995, do procurador Geraldo Rolim, defensor da regularização, e, em maio de 1998, do cacique Francisco de Assis Araújo, o Xicão, pai de Marcos. Em uma outra emboscada em 2003, Marcos ficou ferido e dois índios morreram.

De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, em 2013, a população de índios em Pernambuco era de 48.683 pessoas. Com base em outra metodologia, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou 53.284 no Censo 2010. Embora dez terras indígenas estejam com o processo de demarcação concluído no Estado (ver gráfico), episódios recentes de violência demonstram que a tensão não está completamente superada.

Em 1º de abril deste ano, um incêndio destruiu uma casa sagrada do povo Pankará, na Serra do Arapuá, em Carnaubeira da Penha (Sertão de Itaparica). Segundo lideranças, o ataque, que resultou na destruição de instrumentos, vestes, peças tradicionais e objetos de culto, teria sido provocado por ocupantes não indígenas do território, que ainda não foi demarcado. Maria das Dores dos Santos, a cacique Dorinha Pankará, 52 anos, relata que em outras ocasiões, para impedir os cultos, já se utilizou som alto e pedras chegaram a ser atiradas. “Sofremos muitas perseguições na prática dos nossos rituais. Há pessoas que querem nos intimidar, destruir nossa história e nos impedir de dar continuidade à nossa luta por território”, diz Dorinha, que é vereadora em Carnaubeira da Penha.

Também no mês de abril, no dia 16, Ailson dos Santos, o Yssô Truká, 56 anos, sofreu um ataque em Caruaru (Agreste), quando se preparava para voltar para a aldeia localizada no município de Orocó (Sertão do São Francisco). Ele recebeu disparos feitos pelo carona de uma motocicleta, sendo atingido por quatro tiros. Embora evite apontar uma motivação para o crime, ele cita “sérios problemas por conta da indefinição sobre as terras indígenas”. Em Cabrobó (Sertão), uma área de aproximadamente 1,6 mil hectares está regularizada, enquanto outra de 5.769 ainda está pendente de homologação. Em Orocó, a aquisição de um imóvel para criação de uma reserva indígena Truká está sem acordo e é alvo de ação judicial. A terra está inserida na região conhecida como “Polígono da Maconha”, e os índios denunciam a utilização do local para o plantio da droga, o que agrava os conflitos.

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“Estou com medo, impedido de transitar normalmente e, até agora, não recebemos suporte de segurança do Estado. Tenho minha família, a luta do meu povo, preciso me sentir seguro para desenvolver minhas ações. Esperamos que os responsáveis sejam punidos, para que outros casos não aconteçam”, diz Yssô, que perdeu um irmão e um sobrinho executados dentro da aldeia, segundo ele, “por quatro policiais militares vinculados a posseiros”. “As ameaças nos rondam de forma constante”, prossegue.

De acordo com a secretária-executiva de Direitos Humanos de Pernambuco, Laura Gomes, o Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos do Estado acompanha quatro líderes indígenas, representantes dos povos Xukuru, Truká, Pankará de Itacuruba e Pankararu Entre Serras. Eles estariam em estado de risco ou vulnerabilidade, em razão de sua militância. “O programa articula medidas de proteção e promove a atuação do defensor dos direitos humanos e de suas pautas de militância, objetivando a permanência da pessoa protegida no seu local de atuação”, explica Laura.

O Ministério Público Federal aponta que, entre outros procedimentos, apura o caso de um homicídio na comunidade indígena Atikum – supostamente praticado por policiais militares –, agressões e ameaças contra índios da Aldeia Pankararu e também notícias de violência contra o povo Kapinawá.

Redução de conflitos Ivson José Ferreira, antropólogo da Administração Regional da Fundação Nacional do Índio (Funai) no Recife, aponta que os conflitos em Pernambuco diminuíram em comparação com a década de 90. Entretanto, segundo ele, há uma tensão permanente por causa da presença de não índios nessas terras e da pressão de empreendimentos econômicos. “O mais importante é concretizar a demarcação onde está pendente, com a desintrusão, para que os índios possam ter pleno domínio do território”, diz o indigenista. Ele critica, ainda, o esvaziamento da Funai, que estaria com quadros insuficientes e teve atribuições distribuídas por outros órgãos, além da inexistência, em Pernambuco, de um setor que acompanhe a mediação de conflitos entre índios e posseiros.

Educação – Assessor do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Saulo Ferreira Feitosa afirma que a demora nos processos de demarcação gera instabilidade e colabora para os casos de violência. “A situação não é tão deflagrada como em décadas passadas, mas segue difícil, pela sensação de impunidade e pela criminalização das lideranças indígenas”, acrescenta.

Em termos de políticas públicas, Feitosa cita ainda problemas na área de Educação Indígena. “A luta do movimento resultou na constituição das escolas por professores indígenas, mas não houve avanço na perspectiva de reconhecimento e regulamentação da profissão desse tipo de professor, com concurso diferenciado. O trabalho é prestado por meio de contratos temporários renovados a cada ano, gerando insegurança”, conta.

A Secretaria Estadual de Educação informa que Pernambuco tem 142 escolas estaduais indígenas, com 1.498 professores indígenas e 13.262 alunos. Nessas, todos os funcionários, incluindo-se merendeiras, motoristas e outros profissionais a serviço da educação, são das diversas etnias ou terceirizados.

O deputado Waldemar Borges (PSB), líder do Governo na Assembleia Legislativa de Pernambuco, afirma que essas populações recebem, além da educação específica, assistência social com atenção para pleitos referentes a suas questões. “O Governo direciona os indígenas aos serviços disponibilizados pelo Estado, em parceria com todas as secretarias que têm trabalho destinado a esse público”, diz.

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Contexto nacional é de tensão

 

NÚMEROS - Cerca de 897 mil índios viviam no Brasil em 2010, segundo Censo. Lideranças e indigenistas temem mudanças propostas no Congresso. Foto: Rinaldo Marques

NÚMEROS – Cerca de 897 mil índios viviam no Brasil em 2010, segundo Censo. Lideranças e indigenistas temem mudanças propostas no Congresso. Foto: Rinaldo Marques

Lançado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  (IBGE) no final de junho deste ano, um Caderno Temático com base no Censo 2010 aponta que 896,9 mil indígenas residiam no País. Desses, 517,4 mil (57,8%) viviam em terras indígenas oficialmente reconhecidas e 298,871 mil (33,3%) em áreas urbanas. Outros 80,663 mil (8,9%) habitavam em áreas rurais, aí incluídas terras indígenas não reconhecidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

O estudo identificou 305 etnias e 274 línguas indígenas no Brasil. Segundo o Censo, o Nordeste tem uma população de 232.739 índios, a segunda maior do País, atrás apenas do Norte (342.836). Entre os Estados brasileiros, Pernambuco possui o quarto maior número de pessoas autodeclaradas indígenas. E, com 9.335 índios, o município de Pesqueira tem a sétima maior população indígena do País, em termos absolutos.

No Brasil, esse número cresceu 205% desde 1991, quando foi feito o primeiro levantamento no modelo atual. À época, os índios somavam 294 mil. De acordo com o antropólogo Alexandre Gomes, professor da licenciatura Intercultural Indígena da UFPE, tanto o incremento populacional quanto o aumento no número de pessoas que passaram a se identificar como índios têm como marco a Constituição de 1988. A Carta Magna, segundo ele, mudou o relacionamento desses povos com o Estado, ao estabelecer o direito ao território originário e à organização social própria.

“Grupos antes invisibilizados, que ocultavam a identidade como estratégia de sobrevivência, passaram a se organizar para obter reconhecimento, o que ficou conhecido como emergência étnica ou etnogênese. E, a partir do momento em que conseguiram acessar direitos e suas condições de vida melhoraram, as populações aumentaram”, explica.

Nesse processo, os indígenas também passaram a se articular politicamente, criando associações e dialogando com organismos nacionais e internacionais. Porém, apesar dessas mudanças, a situação nas terras não está completamente equalizada. O relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), registrou 138 homicídios nas áreas indígenas em 2014, contra 97 no ano anterior. Dos 138, quase um terço foram notificados no Mato Grosso do Sul (41), Estado que também lidera o número de suicídios de índios (48). Em Pernambuco, foram nove assassinatos. Entre as causas citadas pelo Cimi para as mortes, estão conflitos internos e situações decorrentes de confinamento territorial e disputas fundiárias.

Em maio deste ano, durante reunião do Fórum Indígena da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, a relatora especial da ONU Victoria Tauli-Corpuz relatou uma visita feita ao Brasil e disse que “os riscos enfrentados pelos povos indígenas estão mais presentes do que nunca, desde a adoção da Constituição de 1988”. Ela citou entre os principais problemas a paralisação das demarcações e o crescente impacto de grandes projetos de infraestrutura nos territórios indígenas, assim como homicídios, ameaças e intimidações. No documento emitido ao final do encontro, o Fórum recomendou ao Brasil o reconhecimento e respeito aos direitos humanos dos índios e pediu ao governo do presidente interino Michel Temer a preservação das atribuições da Funai.

Legislativo – As controvérsias também repercutem no Legislativo. Entre os projetos em tramitação no Congresso Nacional que geram polêmica, estão a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que transfere do Executivo para o Congresso a competência para demarcar as terras indígenas, e o Projeto de Lei nº 1.610/1996, que pretende regulamentar a mineração nessas áreas.

Na justificativa da PEC 215, os autores alegam que o processo de demarcação das terras indígenas é “notadamente arbitrário” e concentrado na Funai, caracterizando-se como uma “verdadeira intervenção em território estadual”. Autor do PL nº 1.610/1996, o senador Romero Jucá (PMDB-RR) cita que a atividade é permitida pela Constituição e pelo Estatuto do Índio. De acordo com a justificativa, o projeto “funcionará como uma grande alavanca ao nosso desenvolvimento, tendo ainda o mérito de eliminar graves conflitos geradores de maléficos resultados para os nossos irmãos índios”.

O antropólogo da Funai Ivson Ferreira considera que, se aprovadas, as propostas serão “um retrocesso contra direitos garantidos há cerca de um século” e, na prática, vão paralisar as demarcações. Do grupo Pankararu, Elisa Urbano, 44 anos, avalia que iniciativas como essas podem acirrar os confrontos entre indígenas e posseiros. “Nós estamos numa das piores conjunturas históricas do Brasil . Estão matando os índios a tiro e também no papel, nas leis que criam e aprovam”, declara.

Frisando que a legislação indígena é federal, e o Parlamento Estadual pouco pode interferir, o deputado João Eudes (PDT), que foi prefeito de Pesqueira por dois mandatos, diz “concordar em parte” com a PEC 215. “A forma como as políticas públicas foram encaminhadas não trouxe melhorias para a vida do povo nativo, salvo as grandes lideranças indígenas”, acrescenta.

Oriundo de Floresta, no Sertão de Itaparica, região onde há a presença de cinco etnias, o deputado Rodrigo Novaes (PSD) ressalta, como avanços recentes, a saúde básica nas aldeias e a criação de cotas para indígenas em faculdades. Ele defende, porém, maior aceitação dos indígenas no mercado de trabalho e obras de infraestrutura para facilitar o escoamento da produção agrícola desenvolvida nessas terras. “Sou a favor de que os movimentos indígenas discutam mais sobre os projetos que estão no Congresso para que cheguem a um consenso satisfatório”, conclui.

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Glossário:

1* – Instrumentos utilizados no toré, cujas batidas no chão marcam o ritmo dos passos e dos toantes

2* – Flauta usada pelos Xukurus

3* – Índio que vai à frente no toré tocando maracás e puxando os cantos

4* – Cultos religiosos que sincretizam elementos africanos, indígenas, espíritas e católicos

*Esta matéria faz parte do jornal Tribuna Parlamentar de agosto. Confira a edição completa.