Em busca do tempo perdido
Atraso de quase sete anos na transposição desperta discussão sobre marco legal e planejamento de grandes obras públicas no Brasil

INTEGRAÇÃO DO SÃO FRANCISCO – Perda da capacidade financeira das empresas está entre fatores que adiaram entrega da obra. Foto: João Bita
Edson Alves Jr.
Quando o projeto de Transposição do Rio São Francisco foi lançado, em 2007, previa-se a inauguração do Eixo Leste do empreendimento até o fim de 2010. O trecho, porém, só ficou pronto em março deste ano. Inicialmente, o Governo Federal estimou gastar cerca de R$ 6,6 bilhões com a redistribuição das águas do Velho Chico – valor que cresceu quase 50% e atingiu a cifra de R$ 9,6 bilhões em março deste ano.
Incremento nos custos e atrasos na obra, que faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), não chegam a surpreender. Um levantamento da Inter.B Consultoria, apresentado à Câmara dos Deputados no último mês de abril, apontou que apenas 16,8% das mais de 29 mil ações do PAC foram executadas. Ainda segundo o estudo, o aumento médio nos gastos é de 49% e o prazo de conclusão mais que duplicou em relação ao original.
Os motivos para isso são diversos, mas, para legisladores e especialistas, um deles é consensual: a falta de planejamento. “No Brasil, infelizmente, desmontamos o sistema de planejamento de obras e serviços públicos porque o associamos à ditadura militar e a decisões que vêm de cima para baixo”, avalia Roberto Montezuma, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco (CAU-PE). “O planejamento precisa ter uma visão de longo prazo, com participação e controle social. Muitas vezes, garante-se recurso para um empreendimento, antes que seja definida visão e projeto detalhado para ele.”
Levantamento da Inter.B Consultoria, apresentado à Câmara dos Deputados, apontou que apenas 16,8% das mais de 29 mil ações do PAC foram executadas.
No caso da transposição, o projeto básico feito em 2007 não especificava, por exemplo, o tipo de solo. Com isso, empresas acabaram tendo que enfrentar terrenos com os quais nunca haviam trabalhado antes – mais rochosos ou arenosos que o previsto. Além disso, trâmites burocráticos e dúvidas sobre a titularidade das terras na etapa de desapropriações são apontados como causas da demora.
“Sem o detalhamento, os problemas só vão aparecer quando a obra começar a caminhar”, reforça o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) Dirceu Rodolfo. Para ele, a dificuldade também remete à falta de planejamento. “Quando não está bem definido o que exigir das empresas, precisa-se fazer aditivos ou incorre-se no abandono das obras. Ou, ainda, a organização pode pedir reequilíbrio econômico-financeiro, o que deve onerar o Estado”, relata. “São situações que podem abrir espaços para compromissos pouco republicanos”, emenda.
A perda da capacidade financeira das empresas e o consequente abandono das obras afetaram a conclusão da Transposição do São Francisco. No Eixo Norte, a saída, em junho de 2016, de uma das empreiteiras contratadas para os trabalhos da primeira etapa – a Construtora Mendes Júnior –, sob alegação de incapacidade técnica e financeira, retardou os trabalhos nos municípios de Cabrobó, Salgueiro, Terra Nova e Verdejante, em Pernambuco, e na cidade de Penaforte, no Ceará. De acordo com o Ministério da Integração Nacional, uma nova licitação foi concluída em abril deste ano. A retomada do empreendimento, agora pelo Consórcio Emsa-Siton, depende de decisão judicial.
Nova lei – Diante desse cenário, mudar a legislação que rege as licitações e obras públicas brasileiras (Lei Federal nº 8.666/1993) desponta como alternativa. A principal proposta atualmente em tramitação revoga a norma anterior e cria um novo marco legal: trata-se do Projeto de Lei nº 6.814/2017, aprovado no Senado e aguardando apreciação na Câmara dos Deputados.
A proposição foi tema de Grande Expediente Especial na Alepe em março, quando o relator da matéria, senador Fernando Bezerra Coelho (PSB-PE), defendeu a tese de que a divisão de riscos nos empreendimentos públicos é assumida de maneira desproporcional pelo Governo. “Na sistemática atual, o Estado é o grande segurador das contratações. O resultado é que as obras ficam inacabadas, e a participação do mercado privado na cobertura desses riscos é afastada”, observou.
O ponto é contemplado no PL 6.814 com a previsão de que seja contratado um seguro-garantia para toda construção pública acima de R$ 100 milhões que cubra até 30% do valor da licitação. Desse modo, se a empresa responsável não puder cumprir com o compromisso assumido, a seguradora poderá, por exemplo, contratar diretamente outra companhia para concluir o empreendimento.
Uma das principais mudanças aprovadas pelos senadores prevê, também, que a realização de obras só poderá ocorrer uma vez que o projeto executivo esteja pronto. Atualmente, a legislação permite que essa etapa seja desenvolvida durante o andamento dos empreendimentos públicos.
Alguns itens do PL, no entanto, ainda geram divergências. A principal delas diz respeito à autorização para o uso da modalidade “contratação integrada” em obras orçadas em mais de R$ 20 milhões, admitindo que as empresas responsáveis pela construção façam todo o projeto (incluindo a parte executiva) a partir de um anteprojeto elaborado pelo ente público.
“O projeto executivo reúne todos os detalhes da obra, é o que garante os custos finais. Essa mudança permitiria desvios do propósito inicial da ação, seja por questão técnica ou não”, acredita Roberto Montezuma. Dirceu Rodolfo também enxerga um problema ético nesse modelo. “A empresa poderia modelar a projeção para favorecer seus próprios interesses”, aponta o conselheiro do TCE.

GARANTIAS – Para Eduíno Brito, que propôs debate sobre licitações na Alepe, nova legislação poderá evitar atrasos e aditivos. Foto: Jarbas Araújo
Por outro lado, Rodolfo reconhece que déficits no corpo técnico seriam um empecilho à admissão dessa etapa pelo Poder Público. “O quadro de engenheiros está sucateado. Mesmo municípios médios como Caruaru e Petrolina não conseguem fazer projetos executivos, e até o Governo Estadual encontra muita dificuldade. Só a União tem essa capacidade”, avalia. O conselheiro ainda questiona limitações ao trabalho dos Tribunais de Contas previstas pela proposição, “ao determinar que o processo de licitação só pode ser interrompido uma vez, por no máximo 30 dias”.
Para o deputado Eduíno Brito (PP), que propôs o debate no Parlamento Estadual, a avaliação geral da futura norma é positiva. “Esse marco legal vai evitar atrasos e aditivos. Empresas que hoje não têm interesse em participar de licitações públicas vão começar a concorrer, aumentando a competitividade na disputa”, acredita.