Uma “cooperativa” de artistas e agitadores culturais pode transformar uma cidade? Em 1990, Recife era apontada internacionalmente como uma das piores metrópoles do mundo para se viver. Na época, os precursores do que viria a ser a cena do Manguebeat se deparavam com o dilema “mudar de lugar ou mudar o lugar”. É o que explica o jornalista e DJ Renato L., um dos articuladores da cena. “Quem podia sair, saiu naquela época. Mas, a gente, naquela pobreza digna, de classe média pobre, classe média baixa, ou então de classes médias estagnadas e decadentes feito eu, não tinha a menor possibilidade de sair do Recife. O jeito era tentar mudar a cidade.”
Na mesma época, num estúdio improvisado na casa de H.d. Mabuse, em Casa Caiada, Olinda, surgiu a Bom Tom Rádio. Ali, Chico Science se juntou a Jorge Du Peixe para registrar a primeira versão de “A Cidade”. Nessa época, o movimento ainda estava restrito ao circuito alternativo, como lembra o chamado “ministro da Tecnologia” do Mangue, e dono do estúdio improvisado, H. d. Mabuse. “Lembrem-se do seguinte: não tinha nada acontecendo na cidade, a cidade estava morta. Então, uma das coisas que era a grande diversão era efetivamente ir para casa, além de ficar bebendo e ouvindo coisas, ficar bebendo, ouvindo e gravando, com um micro system que fazia karaokê.”
O Mangue, ainda sem o beat, fica mais conhecido quando aparece na imprensa pela primeira vez no caderno de Cultura do Jornal do Commercio, em uma reportagem de 1991 sobre a festa Black Planet, em Olinda. Na matéria de Marcelo Pereira, Chico Science, até então vocalista da banda Loustal, embrião da Nação Zumbi, anunciava um novo gênero musical. Também nessa época, durante um encontro num bar nas Graças, Zona Norte do Recife, Science usou o termo para se referir ao som que surgiu de um ensaio com o Bloco Afro Lamento Negro.
Pouco tempo depois, Fred Zero Quatro, vocalista do Mundo Livre S/A, publica para a imprensa o texto “Caranguejos com Cérebro”, provocando reflexões com a imagem-símbolo da antena parabólica enfiada na lama. Quem lembra das metáforas criadas por Fred é o músico Hélder Aragão, o DJ Dolores, que criou capas de discos e viodeclipes das bandas do Manguebeat. “O Fred pegou essa ideia e começou a criar algumas metáforas em torno disso e a metáfora é bem inteligente, que é a ideia desse ecossistema rico, em oposição à cultura da cana de açúcar, que é uma monocultura. O conceito Mangue sempre foi o oposto do que se espera de um movimento ou de uma cena comercial, quando você tem tudo igualzinho.”
A diversidade do Manguebeat se propagava pela cena cultural do Recife. Iniciativas pioneiras como o festival Abril Pro Rock, a partir de 1993, contribuíram para aproximar bandas, gravadoras e imprensa nacional. O idealizador do projeto, o produtor Paulo André, posteriormente se tornou o empresário de Chico Science e Nação Zumbi. Ele conta que precisou buscar a projeção internacional do álbum “Da Lama ao Caos” para emplacar a banda, que ainda enfrentava dificuldades para tocar nas rádios do Brasil. “Quando a Sony chegou com o ‘Da Lama ao Caos’, essas rádios que tocavam Gabriel, o Pensador, Raimundos e Skank, elas disseram: ‘a gente não vai tocar isso, a gente ouviu o disco e não vai tocar.’ Mas por que não vai tocar? ‘Porque isso é regional e a gente não toca música regional.’ Era regional porque era do Nordeste e o Brasil não estava preparado para aquela música.”
Depois da explosão internacional e cerca de 25 anos após o início do movimento, o cenário cultural mudou. A morte precoce de Science em 1997, num acidente de carro em Olinda, poderia ter representado um enfraquecimento da cena. Mas os desdobramentos culturais dentro e fora da música mostram a sobrevivência do espírito Mangue. Atualmente, Pernambuco projeta artistas e produções musicais em grandes eventos. Também conquista salas de cinema mundo afora com uma estética própria, elogiada nos melhores festivais do gênero. São sinais de que o movimento que buscou desbloquear as artérias criativas da cidade ainda pulsa.
O movimento impactou a vida das pessoas, inclusive nas relações do cotidiano. É o caso da comunidade pesqueira da Ilha de Deus, na Imbiribeira, Zona Sul do Recife, local onde foi gravado o viodeoclipe da música “A cidade”. O comunicador a ativista Edson Fly afirma que o Manguebeat foi uma referência importante para os moradores perceberem a ligação com o ecossistema em que vivem. “De uma certa forma nos ajuda a refletir os nossos valores, de valorar esse ambiente, essas pessoas, a nós mesmos e ao Recife de uma maneira geral. Até porque, o Recife depende desses rios limpos, depende desses mangues, que é mais do que um símbolo. Na verdade, é uma verdadeira maternidade: pulsa vida.”
O Manguebeat é considerado Patrimônio Cultural Imaterial do Estado de Pernambuco desde 2009, por uma lei estadual aprovada pela Assembleia Legislativa.