O exemplo que vem do Alto

Em 14/11/2019 - 14:11
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HOMENAGEM - Em agosto, Alepe fez Reunião Solene para celebrar 30 anos da banda Devotos. Foto: Jarbas Araújo

HOMENAGEM – Em agosto, Alepe fez Reunião Solene para celebrar 30 anos da banda Devotos. Foto: Jarbas Araújo

 

André Zahar

Cena recorrente nos shows da banda Devotos, uma roda punk se abriu, pela primeira vez, na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe). Foi no dia 28 de agosto, quando o grupo do Alto José do Pinho (Zona Norte do Recife) recebeu homenagem pelos 30 anos de carreira. Dezenas de fãs e até mesmo o deputado Isaltino Nascimento (PSB), que propôs a Reunião Solene, foram tragados pelo redemoinho humano no Auditório Sérgio Guerra. 

Transmitida pela TV Alepe (e gravada por diversos celulares), a imagem viralizou instantaneamente nas redes sociais. Além da obra musical, a cerimônia prestou reverência ao compromisso da banda em transformar o território onde surgiu por meio da arte e da cidadania. O trabalho virou exemplo para outros bairros periféricos da Capital pernambucana. Vocalista e baixista da Devotos, Cannibal frisa que a dança punk – repleta de movimentos bruscos, pulos e empurrões – “parece até uma bagunça, mas não é”. 

Para algumas pessoas, a dança punk pode chocar, porque nunca viram. Mas aquilo ali é uma manifestação social, de pertencimento. É como um toré indígena”, compara Cannibal, da banda Devotos.

Ao longo da trajetória, iniciada em 1988, a Devotos aproveitou a notoriedade alcançada em sete discos e shows no Brasil e na Europa para apresentar à mídia a cultura efervescente da localidade, com seus maracatus, caboclinhos, escolas de samba, quadrilhas e afoxé. E a atitude “faça você mesmo” da banda ajudou a fermentar outros grupos e projetos no Alto. 

“Neilton [guitarristas da banda] não tinha grana para comprar uma guitarra completa, então comprou o kit (desmontado) e fez com mola de fogão, braço de radiola, fôrma de mesa… Nos ensaios, quando a gente parava para dar um tempo, os amigos pegavam os instrumentos e, desse jeito, surgiram 13 bandas no Alto Zé do Pinho”, conta Cannibal. “A gente começou a tocar dentro da comunidade e trazer a sociedade para cá. A gurizada começou a ver, se identificar, e as pessoas mais antigas começaram a apoiar. Tudo isso trouxe autoestima para os moradores. Hoje em dia, o Alto é espelho para várias outras comunidades”, avalia.

 

“Com fé na mudança dos homens”

Essa movimentação fez com que, na década de 1990, com o impulso ainda do  Manguebeat, o bairro onde vivem cerca de 15 mil moradores, cada vez mais deixasse as páginas policiais dos jornais para ocupar os cadernos de cultura. Ao longo deste processo, outra banda, a Faces do Subúrbio, se tornaria uma das mais importantes do rap nacional. Zé Brown, vocalista do conjunto, lembra como a comunidade, aos poucos, quebrou o preconceito contra os seus próprios artistas: 

Eu levava nome de vagabundo. Diziam que, em vez de estudar, ficava dançando break, mas ali estava fazendo minha faculdade. Isso mudou quando os pais viram os filhos cantando, querendo ir para o show, vestir camisa… E quando veio a mídia”, relembra Zé Brown, da banda Faces do Subúrbio.

“Quando comecei a dar aula no projeto AJP Break [posteriormente Zé Brown Apresenta Talentos], as mães viram que os filhos estavam sendo educados culturalmente. Até a criminalidade começou a perceber que era melhor mostrar esse lado positivo do que o negativo, das drogas”, prossegue Zé Brown, que, hoje morando em São Paulo, segue engajado em projetos de arte e educação.

Por falta de outros baterista na comunidade, Celo, da Devotos, e Ailton Peste, da Matalanamão, tiveram que se desdobrar. Ailton, que tocou com outros seis conjuntos, considera que a música foi o maior instrumento do bairro contra as desigualdades e mazelas sociais.

ORGULHO - Atitude “faça você mesmo” do grupo de Cannibal ajudou a fermentar outros projetos no bairro. Foto: Jarbas Araújo

ORGULHO – Atitude “faça você mesmo” do grupo de Cannibal ajudou a fermentar outros projetos na comunidade, que venceu várias vezes o prêmio Meu Bairro É o Maior, recebendo placa comemorativa. Foto: Jarbas Araújo

Em 2000, diante da dificuldade de tocar em rádios comerciais, ele e outros músicos criaram uma emissora comunitária. Com apoio de entidades da Alemanha e do Rio de Janeiro e um investimento de R$ 4,5 mil, na época, implantaram a Rádio Alto Falante dentro do mercado público e espalharam caixas de som nos postes do bairro. Além da produção musical local, a estação deu voz à comunidade e passou a divulgar ações sociais e temas do cotidiano do bairro.

A programação era diversificada. Com uma equipe de voluntários, em sua maioria músicos das bandas e moradores, a rádio passou 12 anos no ar. O nosso pecado foi não ter construído um estúdio, onde todos pudessem ensaiar, gravar, produzir novas bandas”, avalia Ailton Peste, da Matalanamão

Vocalista do Matalanamão, Adilson Ronrona também participou do projeto e hoje busca reativá-lo. Paralelamente, tornou-se um dos fundadores, neste ano, da cooperativa de cultura alternativa Intercâmbio. “O coletivo foi criado para apoiar a cultura local e ser itinerante, dando força em outras comunidades”, explica. “Fizemos um evento que teve música, grafite, troca de livros, plantio de árvore. No segundo teve batalha de hip hop, DJ. Tudo 0800. A comunidade toda ganha, empreendendo. Não temos apoio de órgão nenhum”, pontua.

 

Ramificações

A agitação cultural na comunidade vem sendo catalisada, também, pelo Grupo Cultural do Alto José do Pinho, surgido em 1989 e que, na década seguinte produziu eventos como o Festival Gestos, Atitude e Rock and Roll, reunindo grupos de música, teatro e poesia. Hoje, após mudanças com a saída de parte dos membros, há cerca de 15 anos, o grupo segue como Poesis e mantém um calendário que inclui rodas de poesia, recitais ritualísticos, shows, peças de teatro, performances de rua, plenárias, oficinas de violão e festival de cultura popular.

À frente do projeto, o historiador e poeta Jailson Oliveira afirma que a cultura, no Alto José do Pinho, “tem o valor de ajudar no combate ao extermínio das ideias, dos sonhos e do bem viver”. Também colabora para a reflexão, a autonomia e o resgate da autoestima periférica, além de movimentar a economia local.  Ele ressalta que os projetos sociais e culturais seguem ocorrendo pelas mãos, inclusive, de novos agentes. “Existe um sentimento de falta muito grande. Embora a gente tenha feito muito, esse muito não preencheu o buraco das fomes”, pontua.

“Essa identidade de luta e de desejo de emancipação ajuda a carimbar o Alto José do Pinho como uma comunidade de constante efervescência cultural”, observa Jailson Oliveira, do Poesis.

Um destes novos atores sociais é o biólogo Hamon Dennovan. Frequentador de shows das bandas locais quando adolescente, ele se inspirou na atmosfera de mobilização para criar em 2014, com outros três amigos, o projeto Alto Sustentável. A iniciativa une ações de educação ambiental à requalificação de espaços públicos. Além de oficinas, realiza mutirões nos quais locais sem conservação ou que acumulavam lixo recebem melhorias, como paredes pintadas, escadarias restauradas e hortas comunitárias, além de outras soluções de sustentabilidade. Maracatus e afoxé também se somaram às atividades.

“As pessoas que foram se envolvendo começaram a adquirir o poder do pertencimento e se sentiram mais motivadas. Mas vimos que não bastava. Passamos a fazer pressão social sobre os governantes, e o Poder Público começou a fornecer alguns serviços, como varrição periódica, poda de árvores e iluminação”, diz ele, que é também policial militar e atua na Assistência Militar da Alepe.

 

Engajamento

Outro espaço de interação entre a comunidade e o Poder Público é o Grupo de Governança Comunitária, formado em 2013. Nas reuniões mensais, os moradores debatem as prioridades do bairro e, na sequência, os órgão responsáveis são acionados. Por este canal, foram obtidas melhorias no distrito sanitário e na oferta de ônibus, além da execução de um plano de mobilidade e da inclusão do bairro no roteiro turístico do Recife.

Uma das lideranças do grupo é o psicólogo Renato Carneiro, que gerencia também os projetos do Centro Social Dom João Costa, instituição com mais de 50 anos de atuação na comunidade. A associação promove atividades de educação, qualificação profissional, cultura e esporte e conta com uma orquestra social. “A gente compartilha com as outras entidades e pessoas ilustres a responsabilidade de cuidar do futuro da própria comunidade”, explica.

Quanto mais pessoas envolvidas no processo de desenvolvimento de cada criança, melhor será o resultado que teremos daqui a alguns anos”, assegura Renato Carneiro, do Centro Social Dom João Costa.

ORIGEM - Criado na comunidade, deputado Isaltino Nascimento ressalta o papel da cultura na identidade do território: “É uma presença forte que dignifica e orgulha muito a todos que fazem o Alto Zé do Pinho”. Foto: Jarbas Araújo

ORIGEM – Criado na comunidade, deputado Isaltino Nascimento ressalta o papel da cultura na identidade do território: “É uma presença forte que dignifica e orgulha muito a todos que fazem o Alto Zé do Pinho”. Foto: Jarbas Araújo

Criado na comunidade, o deputado Isaltino Nascimento ressalta o papel da cultura na identidade do território. Ele registra a presença de agremiações tradicionais centenárias, como o Maracatu Estrela Brilhante, no Alto José do Pinho, onde também surgiram os caboclinhos Tapirapé e Tabajara, entre outras manifestações da cultura popular. 

O parlamentar enfatiza que as atividades culturais são mantidas quase sempre por pessoas de baixa renda. “A cultura é uma presença forte que dignifica e orgulha muito a todos que fazem o Alto Zé do Pinho. É fruto de uma cadeia familiar, de amizade; um círculo tradicional e permanente que contribui para o fortalecimento do bem-estar e da autoestima do povo”, diz.

Na mesma linha, Cannibal faz questão de afirmar que o Devotos esteve na Alepe, em agosto, como uma banda representativa do Alto José do Pinho e de várias outras do subúrbio. “Uma das coisas melhores que eu vi ali foi aquele espaço ser ocupado pela comunidade. A Casa é do povo, é de todo mundo.”

 

*Fotos em destaque (home e Notícias Especiais): Jarbas Araújo. Vídeos: André Zahar