Das artes plásticas à filosofia, da televisão às salas de aula, a gaúcha Marcia Tiburi transita por vários ambientes para discutir questões éticas e estéticas. Ao Tribuna Parlamentar, ela falou da disseminação do ódio nas ruas e nas redes sociais, sobre a qual vaticina: “a covardia é a postura inerente ao fascismo”.
Tribuna Parlamentar – Recentemente, figuras públicas sofreram ataques verbais e até tentativas de agressão física por conta de seus posicionamentos políticos, em ambientes privados. Artistas também têm sofrido esse tipo de ataque e as mensagens de ódio nas redes sociais – expressas pelos chamados haters – proliferam. Esses acontecimentos estão relacionados ao que a senhora considera como a “armadilha da antipolítica”? Para onde aponta esse fenômeno?
Marcia Tiburi – O ódio é um afeto manipulado, assim como qualquer outro afeto pode ser manipulado. O medo, a inveja, a tristeza, a raiva, a alegria, a saudade, o desespero, a angústia e até mesmo o amor podem ser produzidos, intensificados ou controlados. Em nossa época, também as emoções se tornaram mercadorias e, desse modo, são vendidas e compradas, mas nem sempre percebemos isso. O ódio não é vendido de um modo caro nesse momento histórico. Ao contrário, recebemos ódio como uma espécie de brinde da televisão, algo que custa baratinho, como se estivéssemos ganhando alguma coisa com o noticiário que nos engana. Assim com a felicidade, que seria mais do que um afeto, um conjunto complexo de emoções alegres e até mesmo de sentido para a vida.
Os meios de comunicação e a publicidade podem criar modas e, nesse momento, qualquer emoção pode entrar ou sair da moda, digamos assim. Nesse sentido, não podemos jamais falar de um ódio natural, ainda que costumemos naturalizar os afetos. Os discursos midiáticos, mas também os religiosos, que são muito íntimos em sua forma de ser e em seu interesse em manipular as pessoas, usam o amor ou o ódio conforme necessidades. Nesse cenário, a política é aniquilada, porque ela depende de afetos positivos que criem relações construtivas. Na destruição das instituições que vemos atualmente, na destruição das relações humanas, falar de antipolítica faz sentido. Ao mesmo tempo, podemos dizer que essa é a política que nos resta.
TP – De onde partem os discursos que movimentam o que a senhora chama de “máquina movida pelo ódio”?
MT – O próprio Estado aciona com facilidade essa máquina autoritária. Os poderes estabelecidos, mas sobretudo, o poder midiático, responsável pela manipulação dos afetos junto com as religiões, dependem do uso da violência, e o ódio é justamente o afeto que move a violência. O ódio é apenas o combustível dessa máquina.
Mas veja, o problema não está no ódio e sim no seu uso. As pessoas pensam que sentem ódio porque não há como não sentir, mas não sabem que estão sendo “co-movidas” a sentir isso. Não há uma substância odienta, é isso o que precisamos saber. O ódio é algo que surge em contextos e relações. Ele não está dado. Ele depende de uma relação. Desse modo, são os meios de produção do ódio que devemos analisar e não apenas os seus efeitos na sociedade ou na vida das pessoas. Pois, na verdade, os efeitos são esperados pelos sujeitos e pelos mecanismos de sua implantação.
TP – O “ato digital”, conforme sua argumentação no livro “Como conversar com um fascista”, gera a sensação de segurança, ao passo que os compartilhamentos mecânicos nas redes sociais alimentam o “ciclo vicioso do vazio do pensamento”. Qual o papel das redes sociais para a disseminação do ódio e de que forma elas podem – se podem – contribuir para superá-lo?
MT – As redes sociais são meios de reprodução de mentalidades que, ao mesmo tempo, criam mentalidades no processo de repetição. Elas funcionam gerando ideias e sentimentos. Como são meios, podem ser usadas para o que for preciso. Se quisermos disseminar ódio ou amor, a escolha é dos usuários. Claro que os usuários são usados em um sentido ou outro por aqueles que conhecem o mecanismo e pelo próprio mecanismo. Hoje, todo mundo é um pouco “funcionário” voluntário – ou viciado – das empresas que lucram muito com as redes. Há algo de trabalho alienado nisso. Por outro lado, se as pessoas souberem usá-las, talvez possam inverter um pouco esse jogo a seu favor. Como todas as redes acionam o narcisismo mais banal, só quem tem muita consciência de si e do outro, será capaz de escapar ao encanto da tentação populista que lhes é própria.
TP – Na sua avaliação, vivemos “tempos fascistas”. A senhora escreve ainda que “no Brasil atual não devemos acobertar o fato de um crescimento de tendências fascistas”. Fala-se muito que o contexto de polarização política no País está por trás de uma radicalização de posicionamentos. Isso procede? Ou os “tempos fascistas” também são observáveis em outros países?
MT – Épocas diversas produzem fascismos diferentes, ou seja, o fascismo se dá em condições históricas. O que eu chamo de fascismo é uma operação imaginária, uma operação de linguagem, na qual os preconceitos são expostos de uma maneira que, em momentos não fascistas, causaria vergonha. O fascismo se caracteriza pela perda de limites estéticos, éticos e políticos, mas também jurídicos. Uma espécie de vale tudo em que a lei antidemocrática do mais forte entra em vigência. Aqueles que são considerados fracos são maltratados, rechaçados, humilhados de um modo ostentatório e publicitário. Todos querem se sentir fortes, mesmo que não tenham como. Usam recursos ridículos. No Brasil atual, usa-se principalmente as redes e a agressividade possível para manifestar força. Fácil ver que é a covardia, a postura inerente ao fascismo. Por isso seus principais personagens são sempre caricatos, pois forçam uma expressão para manifestar poder, mas não têm poder. O autoritarismo cotidiano funciona assim, quem não tem poder, aquilo que emana de um outro, usa a violência. Em palavras bem simples, o fascismo força a barra. Força e violência, contra o mais fraco são o elemento básico do fascismo.
TP – A senhora já passou por alguma situação pessoal de retaliação violenta aos seus posicionamentos políticos?
MT – Pessoalmente, eu não me impressiono muito com isso. Quem está na cena pública sempre recebe muito amor das pessoas e ódio também. Nesse momento, não vi nada que extrapolasse o esperado em relação a mim. Mas o meu caso é específico, pois sou professora de filosofia e as pessoas tendem a escutar um professor. Há, certamente, quem se excede nas expressões de preconceito, mas nada que esteja acima do esperado.