*André Zahar

CONVÍVIO – Comunidade de pescadores em que foi gravado videoclipe A Cidade quer ampliar conscientização sobre ecossistema e dinâmicas sociais. Foto; Breno Laprovitera
Cercada pelo mangue, a comunidade pesqueira da Ilha de Deus, na Imbiribeira (Zona Sul do Recife), foi um dos locais escolhidos por Chico Science e Nação Zumbi para a gravação do videoclipe de A Cidade. Os moradores ainda se lembram de quando a banda chegou e as crianças correram para dentro do manguezal. “Eu e mais duas meninas fomos chamadas para aparecer no clipe. Chico Science foi muito bem recebido aqui”, relembra a pescadora Joseane Barros da Silva, 32 anos. “Quando ele morreu, fiquei muito abalada. Fomos eu e mais um bocado de gente para o enterro, em Santo Amaro”, revela.
Situada entre os rios Pina, Jordão e Tejipió, a comunidade faz limite com os bairros do Pina, Boa Viagem, Ipsep, Jiquiá e Afogados. Atualmente, reúne cerca de 280 famílias, a maioria dedicada à pescaria há várias gerações, em especial à extração de sururu. “Os sururus daqui vão para os melhores restaurantes e o pescador não é reconhecido. Ele não recebe, por exemplo, o seguro-defeso”, denuncia Elinton Sacramento Teixeira, 39, ativista da Ação Comunitária Caranguejo Uçá. O benefício, no valor de um salário mínimo, é garantido pelo Governo Federal aos pescadores durante o período de reprodução de algumas espécies, quando a pesca fica proibida.
Para os moradores da Ilha de Deus, o mangue não é mera fonte de renda, mas um ecossistema ao qual se sentem pertencentes por laços naturais e de identidade cultural. Josemar Barros da Silva, 29, sai para pescar desde criança e retira sururus de Brasília Teimosa, Santo Amaro e Olinda. No momento da entrevista, enquanto passava os moluscos do barco para os caixotes de feira nos quais serão transportados, mostrou pedaços de saco plástico recolhidos durante a atividade. Por meio do Centro Educacional Popular Saber Viver, o pescador atua na limpeza do mangue. “Quando a maré enche, a gente pega o material e faz a reciclagem”, conta.
Na dissertação de mestrado em Sociologia Mangue: Moderno, Pós-Moderno, Global, a pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) Glaucia Peres da Silva aponta que o movimento Mangue tomou como referência a imagem utilizada pelo médico e geógrafo Josué de Castro ao falar dos homens que habitam os manguezais, mas agregou as noções de “fertilidade, diversidade e riqueza”.
“O medo dá origem ao mal. O homem coletivo sente a necessidade de lutar” (Chico Science e Nação Zumbi, “Monólogo ao pé do ouvido”)
“Essa transformação em positividade de tudo aquilo que era visto como negativo me parece ser uma das chaves de leitura mais interessantes (…), mostrando que, apesar de todas as coisas ruins associadas aos manguezais, estes devem ser entendidos como algo extremamente importante para a vida marinha e humana, conforme atestado por uma série de dados”, escreve a professora.

ROTINA – Extração de sururu é atividade de Josemar da Silva desde a infância. Foto: Breno Laprovitera
Ativista da Ação Comunitária Caranguejo Uçá, o jornalista e produtor cultural Edson Fly, 43, relata incômodo quando a comunidade é retratada com ênfase nos aspectos negativos. Na sede do grupo, funcionam a sala de música do Maracatu Nação da Ilha, biblioteca, rádio, teatro e ilha de edição. Ali também é gravado o Jornal da Maré, veiculado pela TV Universitária do Recife.
Fly, que conheceu Science pessoalmente por meio do Teatro Mustardinha & Companhia (Teamu & Cia), sublinha que o movimento Mangue aconteceu em toda a cidade, sendo uma entre outras referências que ajudaram os moradores da Ilha de Deus a refletir sobre os seus valores, reconhecendo-se como comunidade tradicional pesqueira.
“O Recife depende desses rios limpos, desses mangues pulsando vida. A desmistificação disso, a partir do ambiente Ilha de Deus, é fundamental”, acredita. “Mais do que uma inspiração [nas ideias do Manguebeat], temos conhecimento de causa. Nossa luta é pela transformação não só do ambiente, mas do indivíduo e de sua relação com o outro.”
Fly critica políticas públicas que “outorgam privilégios para uma parcela da cidade”, assim como propostas de flexibilização de leis sobre licenciamento ambiental. “O homem não se alimenta de concreto, piche, petróleo. Alimenta-se de alimentos e água saudáveis. Nós temos tudo para reverter o quadro caótico que existe na cidade, mas se nossos mangues não estiverem saudáveis, a cidade também não vai estar”, conclui.
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*Esta matéria faz parte do jornal Tribuna Parlamentar de novembro. Confira a edição completa.