Parecer 10490/2022
Texto Completo
PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 3098/2022
AUTORIA: DEPUTADO JOÃO PAULO
PROPOSIÇÃO QUE DISPÕE SOBRE O CULTIVO E O PROCESSAMENTO DA CANNABIS SATIVA PARA FINS MEDICINAIS, VETERINÁRIOS, CIENTÍFICOS E INDUSTRIAIS, POR ASSOCIAÇÕES DE PACIENTES, NOS CASOS AUTORIZADOS PELA ANVISA E PELA LEGISLAÇÃO FEDERAL NOS TERMOS LEI FEDERAL Nº 11.343/2006. COMPETÊNCIA ADMINSTRATIVA DE TODOS OS ENTES PARA CUIDAR DA SAÚDE E PROTEGER PESSOAS COM DEFICIÊNCIA (CF, ART. 23, II). SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO (CF, ART 196). ATENDIMENTO INTEGRAL COMO DIRETRIZ DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE (ART. 198, II). COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE ENTRE UNIÃO E ESTADOS PARA LEGISLAR SOBRE PROTEÇÃO E DEFESA DA SAÚDE (CF, ART 24, XII). INEXISTÊNCIA DE NORMA FEDERAL REGULAMENTANDO O CULTIVO, APESAR DE HAVER PERMISSÃO DE IMPORTAÇÃO E VENDA DE MEDICAMENTOS. COMPETÊNCIA COMPLEMENTAR SUPLETIVA DOS ESTADOS, NOS TERMOS do § 3º DO ART. 24 DA CF. AVANÇO DO CONHECIMENTO NO CAMPO MÉDICO E CIENTÍFICO. TESE DA INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE JÁ RECONHECIDA PELO STF EM OUTRAS SITUAÇÕES. APLICAÇÃO AO CASO EM COMENTO. NECESSIDADE DE APRESENTAÇÃO DE SUBSTITUTIVO. PELA APROVAÇÃO.
1. RELATÓRIO
Vem a esta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, para análise e emissão de parecer, o Projeto de Lei Ordinária nº 3098/2022, de autoria do Deputado João Paulo, que dispõe sobre o cultivo e o processamento da cannabis sativa para fins medicinais, veterinários, científicos e industriais, por associações de pacientes, nos casos autorizados pela ANVISA e pela legislação federal nos termos Lei Federal nº 11.343/2006.
O Projeto de Lei tramita nesta Assembleia Legislativa pelo regime ordinário (art. 223, inciso III, Regimento Interno).
É o relatório.
2. PARECER DO RELATOR
Cabe à Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, nos termos do art.94, I, do Regimento Interno desta Casa, manifestar-se sobre a constitucionalidade, legalidade e juridicidade das matérias submetidas a sua apreciação.
A proposição vem arrimada no art. 19, caput, da Constituição Estadual e no art. 194, inciso I, do Regimento Interno desta Assembleia Legislativa.
Trata-se de louvável iniciativa, fundamental para assegurar o acesso à saúde de pessoas que fazem uso terapêutico da cannabis medicinal. Dessa forma, a proposição encontra-se em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde, ambos previstos constitucionalmente.
Em relação à competência administrativa, competência para executar ações, assim a CF dispõe em relação à saúde :
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...)
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;”
Também na Carta Magna, há um Título chamado “Da Ordem Social”, com um capítulo chamado “Da Seguridade Social”, havendo neste uma Seção chamada “Da Saúde”. Nesta Seção, importante destacarmos o artigo 196, que a inicia, bem como o artigo 198. Vejamos:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
(...)
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
(...)
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;”
Por fim, a Constituição Federal garante aos Estados competência concorrente para, junto com a União, legislar sobre proteção e defesa da saúde.
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(...)
XII – previdência social, proteção e defesa da saúde;”
Avançando na matéria objeto do projeto, necessário consignar que a União Federal editou a Lei Federal 11.343, de 23 de agosto de 2006, conhecida como Lei de Drogas. Em tal diploma, há a seguinte previsão:
“Art. 2o Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.
Parágrafo único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas”
Da análise do dispositivo transcrito, percebe-se que, se por um lado ficou proibido o plantio de substratos dos quais possam ser produzidas drogas (e a cannabis é uma delas, já que consta de atos infralegais editados pela ANVISA como sendo droga), por outro lado à União ficou garantida a prerrogativa de autorizar o plantio, cultura e colheita de tais substâncias para fins medicinais ou científicos.
Contudo, passados 16 anos da publicação da referida lei, a União não regulamentou o plantio da cannabis para fins medicinais, mesmo com fortes modificações no conhecimento científico a respeito das propriedades medicinais da substância. Com efeito, a própria União reconhece a finalidade medicinal da cannabis, haja vista permitir o uso medicinal de produtos elaborados usando-a como matéria prima. No entanto, sem motivo aparente, insiste em negar a possibilidade de seu cultivo e plantio em território nacional para fins medicinais, impondo àqueles que queiram produzir os remédios à base da substância que realizem a importação da matéria prima, encarecendo sobremaneira a medicação, que hoje em dia tem evidência científica de utilidade para tratamento de certas doenças.
Assim dispõe a RDC 327-2019 da Anvisa:
“Art. 18. Para fins da fabricação e comercialização de produto de Cannabis, em território nacional, a empresa deve importar o insumo farmacêutico nas formas de derivado vegetal, fitofármaco, a granel, ou produto industrializado.
Parágrafo único. Não é permitida a importação da planta ou partes da planta de Cannabis spp.”
Desta forma, em havendo vácuo legislativo quanto à previsão da possibilidade de plantio da cannabis em território nacional para fins medicinais e científicos, entendemos que a situação pode ser enquadrada nos parágrafos do artigo 24 da CF, que assim dispõem :
“§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.”
O parágrafo 3º, supracitado, trata da competência legislativa complementar supletiva, garantida aos Estados, que, quando não houver lei federal regulamentando a matéria, poderão legislar sobre o tema, com a ressalva de que posterior lei federal tratando da matéria irá suspender a eficácia da lei estadual naquilo que for contrário. Assim sendo, uma vez que a União, apesar de permitir a comercialização de remédios à base de cannabis, não exerceu seu papel de permitir o cultivo da matéria-prima, obrigando que seja feita a importação da substância, entendemos que exsurge a competência complementar supletiva do Estado na matéria, haja vista tratar-se de legislação a respeito de proteção e defesa da saúde, de forma que o Estado de Pernambuco tem competência, nos termos aqui postos, para editar lei na forma do PLO posto em análise.
No caso, também entendemos indispensável citar a teoria da “inconstitucionalidade superveniente” ou “processo de insconstitucionalização”, utilizada pelo STF no paradigmático “Caso do Amianto”. Naquela assentada, após ter reconhecido, inicialmente, a constitucionalidade de norma federal que permitia o uso do amianto crisotila, o STF acabou por declarar a constitucionalidade de normas estaduais que impediam o uso de tal substância, declarando, por fim, a inconstitucionalidade da norma federal que liberava seu uso, afirmando que ocorreu uma progressiva inconstitucionalidade da norma federal, que não mais estaria de acordo com o conhecimento científico vigente no momento. Vejamos trechos da ementa da decisão do Pretório Excelso:
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 12.684/2007 do Estado de São Paulo. Proibição do uso de produtos, materiais ou artefatos que contenham quaisquer tipos de amianto ou asbesto. Produção e consumo, proteção do meio ambiente e proteção e defesa da saúde. Competência legislativa concorrente. Impossibilidade de a legislação estadual disciplinar matéria de forma contrária à lei geral federal. Lei federal nº 9.055/1995. Autorização de extração, industrialização, utilização e comercialização do amianto da variedade crisotila. Processo de inconstitucionalização. Alteração nas relações fáticas subjacentes à norma jurídica. Natureza cancerígena do amianto crisotila e inviabilidade de seu uso de forma efetivamente segura. Existência de matérias-primas alternativas. Ausência de revisão da legislação federal, como determina a Convenção nº 162 da OIT. Inconstitucionalidade superveniente da Lei Federal nº 9.055/1995. Competência legislativa plena dos estados. Constitucionalidade da Lei estadual nº 12.684/2007. Improcedência da ação. 1. A Lei nº 12.684/2007, do Estado de São Paulo, proíbe a utilização, no âmbito daquele Estado, de produtos, materiais ou artefatos que contenham quaisquer tipos de amianto ou asbesto, versando sobre produção e consumo (art. 24, V, CF/88), proteção do meio ambiente (art. 24, VI) e proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, CF/88). Dessa forma, compete, concorrentemente, à União a edição de normas gerais e aos estados suplementar a legislação federal no que couber (art. 24, §§ 1º e 2º, CF/88). Somente na hipótese de inexistência de lei federal é que os estados exercerão a competência legislativa plena (art. 24, § 3º, CF/88). 2. A Constituição de 1988 estabeleceu uma competência concorrente não cumulativa, na qual há expressa delimitação dos modos de atuação de cada ente federativo, os quais não se sobrepõem. Compete à União editar as normas gerais (art. 24, § 1º), não cabendo aos estados contrariar ou substituir o que definido em norma geral, mas sim o suplementar (art. 24, § 2º). Se, por um lado, a norma geral não pode impedir o exercício da competência estadual de suplementar as matérias arroladas no art. 24, por outro, não se pode admitir que a legislação estadual possa adentrar a competência da União e disciplinar a matéria de forma contrária à norma geral federal, desvirtuando o mínimo de unidade normativa almejado pela Constituição Federal. A inobservância dos limites constitucionais impostos ao exercício da competência concorrente implica a inconstitucionalidade formal da lei. 3. O art. 1º da Lei Federal nº 9.055/1995 proibiu a extração, a produção, a industrialização, a utilização e a comercialização de todos os tipos de amianto, com exceção da crisotila. Em seu art. 2º, a lei autorizou a extração, a industrialização, a utilização e a comercialização do amianto da variedade crisotila (asbesto branco) na forma definida na lei. Assim, se a lei federal admite, de modo restrito, o uso do amianto, em tese, a lei estadual não poderia proibi-lo totalmente, pois, desse modo, atuaria de forma contrária à prescrição da norma geral federal. Nesse caso, não há norma suplementar, mas norma contrária/substitutiva à lei geral, em detrimento da competência legislativa da União. 4. No entanto, o art. 2º da Lei Federal nº 9.055/1995 passou por um processo de inconstitucionalização, em razão da alteração nas relações fáticas subjacentes à norma jurídica, e, no momento atual, não mais se compatibiliza com a Constituição de 1988. Se, antes, tinha-se notícia dos possíveis riscos à saúde e ao meio ambiente ocasionados pela utilização da crisotila, falando-se, na época da edição da lei, na possibilidade do uso controlado dessa substância, atualmente, o que se observa é um consenso em torno da natureza altamente cancerígena do mineral e da inviabilidade de seu uso de forma efetivamente segura, sendo esse o entendimento oficial dos órgãos nacionais e internacionais que detêm autoridade no tema da saúde em geral e da saúde do trabalhador. 5. A Convenção nº 162 da Organização Internacional do Trabalho, de junho de 1986, prevê, dentre seus princípios gerais, a necessidade de revisão da legislação nacional sempre que o desenvolvimento técnico e o progresso no conhecimento científico o requeiram (art. 3º, § 2). A convenção também determina a substituição do amianto por material menos danoso, ou mesmo seu efetivo banimento, sempre que isso se revelar necessário e for tecnicamente viável (art. 10). Portanto, o Brasil assumiu o compromisso internacional de revisar sua legislação e de substituir, quando tecnicamente viável, a utilização do amianto crisotila. 6. Quando da edição da lei federal, o país não dispunha de produto qualificado para substituir o amianto crisotila. No entanto, atualmente, existem materiais alternativos. Com o advento de materiais recomendados pelo Ministério da Saúde e pela ANVISA e em atendimento aos compromissos internacionais de revisão periódica da legislação, a Lei Federal nº 9.055/1995 – que, desde sua edição, não sofreu nenhuma atualização -, deveria ter sido revista para banir progressivamente a utilização do asbesto na variedade crisotila, ajustando-se ao estágio atual do consenso em torno dos riscos envolvidos na utilização desse mineral. 7. (i) O consenso dos órgãos oficiais de saúde geral e de saúde do trabalhador em torno da natureza altamente cancerígena do amianto crisotila, (ii) a existência de materiais alternativos à fibra de amianto e (iii) a ausência de revisão da legislação federal revelam a inconstitucionalidade superveniente (sob a óptica material) da Lei Federal nº 9.055/1995, por ofensa ao direito à saúde (art. 6º e 196, CF/88), ao dever estatal de redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, inciso XXII, CF/88), e à proteção do meio ambiente (art. 225, CF/88). 8. Diante da invalidade da norma geral federal, os estados-membros passam a ter competência legislativa plena sobre a matéria, nos termos do art. 24, § 3º, da CF/88. Tendo em vista que a Lei nº 12.684/2007 do Estado de São Paulo proíbe a utilização do amianto crisotila nas atividades que menciona, em consonância com os preceitos constitucionais (em especial, os arts. 6º, 7º, inciso XXII; 196 e 225 da CF/88) e com os compromissos internacionais subscritos pelo Estado brasileiro, não incide ela no mesmo vício de inconstitucionalidade material da legislação federal. 9. Ação direta julgada improcedente, com a declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 9.055/1995, com efeito erga omnes e vinculante.
(ADI 3937, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 24/08/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 31-01-2019 PUBLIC 01-02-2019)
Mutatis mutandis, entendemos que a situação sub examine se assemelha à situação acima citada. O estado da arte científico atual é indene de dúvidas quanto à eficiência dos tratamentos com medicamentos feitos à base de cannabis, tanto é assim que a própria ANVISA permite sua comercialização em território nacional. Negar a possibilidade de plantio, de forma a baratear os custos da medicação, impondo aos necessitados um maior dispêndio financeiro e até mesmo, em caso de pessoas necessitadas financeiramente, impossibilitando o seu uso, para nós está em total contrariedade aos dispositivos constitucionais acima citados, de proteção à saúde.
A nosso ver, inconstitucional é a situação ora posta, em que a mora da União em permitir o plantio, para fins medicinais, gera inegável barreira ao acesso à saúde e à dignidade da pessoa humana, inclusive, sob o ponto de vista da isonomia material, já que cidadãos mais abastados têm acesso a medicações que poderiam ser mais facilmente adquiridas por cidadãos menos favorecidos financeiramente caso a autorização do plantio já existisse.
Corroborando a viabilidade jurídica do projeto, imperioso ressaltar recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, que concedeu salvo-conduto para que pacientes pudessem fazer o cultivo de cannabis para fins medicinais sem serem alvo de qualquer medida penal por parte do Estado, indo ao encontro de ideias e princípios defendidos ao longo deste Parecer. Vejamos a ementa da decisão:
“RECURSO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. SALVO-CONDUTO. CULTIVO ARTESANAL DE CANNABIS SATIVA PARA FINS MEDICINAIS. PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA, FRAGMENTARIEDADE E SUBSIDIARIEDADE. AUSÊNCIA DE OFENSA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. OMISSÃO REGULAMENTAR. DIREITO À SAÚDE. 1. O Direito Penal é conformado pelo princípio da intervenção mínima e seus consectários, a fragmentariedade e a subsidiariedade. Passando pelo legislador e chegando ao aplicador, o Direito Penal, por ser o ramo do direito de mais gravosa sanção pelo descumprimento de suas normas, deve ser ultima ratio. Somente em caso de ineficiência de outros ramos do direito em tutelar os bens jurídicos é que o legislador deve lançar mão do aparato penal. Não é qualquer lesão a um determinado bem jurídico que deve ser objeto de criminalização, mas apenas as lesões relevantes, gravosas, de impacto para a sociedade. 2. A previsão legal acerca da possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006, permite concluir tratamento legal díspar acerca do tema: enquanto o uso recreativo estabelece relação de tipicidade com a norma penal incriminadora, o uso medicinal, científico ou mesmo ritualístico-religioso não desafia persecução penal dentro dos limites regulamentares. 3. A omissão legislativa em não regulamentar o plantio para fins medicinais não representa "mera opção do Poder Legislativo" (ou órgão estatal competente) em não regulamentar a matéria, que passa ao largo de consequências jurídicas. O Estado possui o dever de observar as prescrições constitucionais e legais, sendo exigível atuações concretas na sociedade. 4. O cultivo de planta psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade. A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco a saúde pública. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade, aqui, é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina. 5. Vislumbro flagrante ilegalidade na instauração de persecução penal de quem, possuindo prescrição médica devidamente circunstanciada, autorização de importação da ANVISA e expertise para produção, comprovada por certificado de curso ministrado por associação, cultiva cannabis sativa para extração de canabidiol para uso próprio. 6. Recurso em habeas corpus provido para conceder salvo-conduto a Guilherme Martins Panayotou, para impedir que qualquer órgão de persecução penal, como polícias civil, militar e federal, Ministério Público estadual ou Ministério Público Federal, turbe ou embarace o cultivo de 15 mudas de cannabis sativa a cada 3 meses, totalizando 60 por ano, para uso exclusivo próprio, enquanto durar o tratamento, nos termos de autorização médica, a ser atualizada anualmente, que integra a presente ordem, até a regulamentação do art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006.
Apesar de todo o exposto, entendemos que é necessária a apresentação de substitutivo a fim de alterar pontos específicos do PLO. Propomos, portanto, o seguinte substitutivo:
SUBSTITUTIVO Nº /2022 AO PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 3098 /2022
Altera integralmente a redação do Projeto de Lei Ordinária nº 3098 /2022, de autoria do Deputado João Paulo.
Artigo Único O Projeto de Lei Ordinária nº 3098 /2022 passa a tramitar com a seguinte redação:
Dispõe sobre o cultivo e o processamento da cannabis spp para fins medicinais, veterinários e científicos, por associações de pacientes, nos casos autorizados pela ANVISA e pela legislação federal nos termos Lei Federal nº 11.343/2006.
Art. 1º Será permitido o cultivo e o processamento da cannabis spp para fins medicinais, veterinários e científicos, por “associações de pacientes da cannabis medicinal”, nos casos de uso autorizados pela ANVISA, ou por legislação federal, com finalidades terapêuticas para tratar e amenizar sintomas de diversas patologias com a finalidade de:
I - proteger, preservar e ampliar a saúde pública da população por meio de pesquisas que contribuam para minimizar possíveis riscos e danos associados a tratamentos com a “cannabis medicinal”, assim como a informar sobre seus efeitos terapêuticos pertinentes a determinadas patologias;
II - estimular a divulgação para os profissionais da área da saúde para que saibam das possibilidades de uso e riscos da “cannabis medicinal”;
III - garantir o direito à saúde mediante o acesso a tratamentos eficazes de doenças e condições médicas, de quem deles precisarem.
Art. 2º É assegurado o direito de qualquer pessoa ao acesso do tratamento com produtos à base de cannabis para uso medicinal, desde que com prescrição de profissional habilitado, observadas as disposições da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, e atendidos os requisitos previstos em lei, permitindo-se o uso veterinário desde que autorizado pelo órgão responsável.
Art. 3º Entende-se por cultivo da cannabis spp: processo que pode contemplar as atividades de plantio, cultura, colheita, aquisição, armazenamento, transporte, expedição e processamento até a etapa de secagem da planta cannabis.
Art. 4º Para os fins desta Lei , entende-se por “cannabis medicinal”: a planta “cannabis” fêmea utilizada com finalidades terapêuticas, incluídos seus óleos, resinas, extratos, compostos, sais, derivados, misturas, xaropes ou preparações cujo conteúdo de tetrahidrocanabinol (THC), canabidiol (CBD) e demais substâncias presentes variem conforme a capacidade para aliviar os sintomas de cada paciente.
Art. 5º Entende-se por “Associações de pacientes da cannabis medicinal”: entidades privadas sem fins lucrativos , legalmente constituídas, criadas especificamente para pesquisa, cultivo, produção, armazenamento e/ou distribuição de produtos à base de cannabis destinados ao uso medicinal humano e/ou veterinário e que atenda os requisitos exigidos na legislação nacional e local para realização de suas atividades.
Art. 6º As Associações de pacientes poderão realizar convênios e parcerias com instituições de ensino e pesquisas, objetivando apoio para análise dos remédios com a finalidade de garantir a padronização e segurança para o tratamento dos pacientes.
Art. 7º No desenvolvimento das atividades de pesquisa devem ser observadas as demais determinações legais e regulamentares concernentes ao cultivo, processamento, produção e comercialização de cannabis spp, incluindo sementes e demais materiais biológicos delas derivados, bem como seu uso para fins medicinais e de pesquisa.
Art. 8º O incentivo à pesquisa e à produção de evidências científicas sobre o uso da cannabis deve observar as seguintes diretrizes:
I - desenvolvimento científico, tecnológico, econômico e social, com ênfase na região do semiárido do Estado;
II - geração de emprego e renda;
III - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.
Art. 9º As Associações deverão contar obrigatoriamente com um profissional farmacêutico para indicação, acompanhamento e tratamento dos pacientes associados.
Art. 10. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”
Diante do exposto, o Parecer do Relator é pela aprovação, nos termos do Substitutivo, do Projeto de Lei Ordinária nº 3098/2022, de autoria do Deputado João Paulo.
É o Parecer do Relator.
3. CONCLUSÃO DA COMISSÃO
Tendo em vista as considerações expendidas pelo relator, a Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, por seus membros infra-assinados, opina pela aprovação, nos termos do Substitutivo, do Projeto de Lei Ordinária nº 3098/2022, de autoria do Deputado João Paulo.
Histórico