Publicado em 17/10/2019 - 14:10

Movimentação popular

Representantes da sociedade civil organizada contam como tentaram influenciar a elaboração da Constituição Estadual

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Edson Alves Jr., com colaboração de Ciro Rocha

Com a redemocratização do Brasil nos anos 1980, novos atores surgiram junto com a ordem jurídica em construção. Movimentos sociais se organizaram para influenciar na elaboração da Constituição Federal de 1988, e continuaram o mesmo trabalho em relação à Carta Magna Estadual de 1989.

PARTICIPAÇÃO - "Classes mais desfavorecidas e pobres vieram com muito mais força em busca de direitos", aponta o ex-deputado Henrique Queiroz. Foto: Alepe/Arquivo

PARTICIPAÇÃO – “Classes desfavorecidas vieram com muito mais força em busca de direitos”, aponta o ex-deputado Henrique Queiroz. Foto: Alepe/Arquivo

“O mais notável é que os segmentos que não eram ouvidos passaram a ter uma participação muito grande na criação da nossa Constituição. As classes mais desfavorecidas e pobres vieram com muito mais força em busca de direitos. Foi o grupo que mais se movimentou”, analisa o ex-deputado Henrique Queiroz.

“Diversos movimentos se mobilizaram para influir na Carta Magna de 88: por saúde e educação públicas, pelo direito à moradia. Mas depois que a Constituição Federal foi promulgada, eles perceberam que a tarefa não havia acabado, porque muito do que estava naquela lei dependia da Constituição Estadual”, relembra Rosalira Oliveira. A antropóloga foi uma das coordenadoras do Movimento Unificado Constituinte Popular (MUCP).

O MUCP congregou 17 organizações não governamentais que atuaram na Constituinte Estadual. Entidades como o Gabinete Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), o Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (Cendhec), a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), o Centro Josué de Castro e a Federação dos Trabalhadores Rurais e Agricultores de Pernambuco (Fetape).

ESTRATÉGIA - "Organizações criaram grupo de apoio para formalizar as propostas e fazer pressão. Um trabalho de lobby mesmo”, explica Rosalira Oliveira, uma das coordenadoras do Movimento Unificado Constituinte Popular. Foto: Nando Chiappetta

ESTRATÉGIA – “Organizações criaram grupo de apoio para formalizar as propostas e fazer pressão. Um trabalho de lobby mesmo”, explica Rosalira Oliveira, uma das coordenadoras do Movimento Unificado Constituinte Popular. Foto: Nando Chiappetta

“Essas organizações criaram um grupo de apoio para formalizar as propostas que vinham dos movimentos e para fazer pressão. Era um trabalho de lobby mesmo”, explica Rosalira. “Não era parte da tradição política de Pernambuco a participação popular na Alepe, e mesmo após a redemocratização, isso não era comum. Havia, claro, deputados que se opunham a nós, mas a recepção foi acolhedora, como parte do jogo democrático”, avalia a antropóloga.

“Posso dizer que tudo o que tem de mais avançado na Constituição de Pernambuco foi resultado da participação dos movimentos, assim como aconteceu na Constituição Federal”, aponta outro coordenador do MUCP , Marcelo Mário de Melo. “O capítulo  da Constituição Estadual sobre a Cultura, por exemplo, foi o mais avançado feito no País. Colocamos lá que o Estado deveria ter uma rede de espaços culturais permanentes em cada município ou distrito. Assim como existem postos de saúde e delegacias de polícia, também haveria espaços culturais. Mas isso nunca foi cumprido”, registrou.

CONQUISTA - Marcelo Melo diz que capítulo sobre Cultura foi o mais avançado do País. Foto: Nando Chiappetta

CONQUISTA – Marcelo Mário de Melo diz que capítulo sobre Cultura foi o mais avançado do País. Foto: Nando Chiappetta

Marcelo Mário de Melo também destaca que a participação na Constituinte Estadual foi um grande aprendizado para os movimentos sociais. “Tentamos inserir no texto um capítulo detalhado sobre a Comunicação, numa proposta criada pelos sindicatos e acadêmicos da área, que tratava de direito à informação e de espaços públicos de comunicação. Mas na votação perdemos”, relata. “No ano seguinte (1990), quando voltamos a nos mobilizar para a elaboração da Lei Orgânica do Recife, fizemos uma proposta menos detalhada, que acabou sendo incluída na legislação municipal”, completa.  

A mobilização realizada na década de 1980 pelas Constituintes federal e estadual também traz reflexões sobre a situação dos movimentos sociais hoje. “Não sei se conseguiríamos fazer atualmente o que fizemos em 1989, juntando vários grupos numa sala para elaborar algo em comum. Exemplo disso foram as edições do Fórum Social Mundial, nos anos 2000, que nunca divulgaram um documento conjunto”, observa Rosalira. “Estamos num momento de fragmentação extremada. Isso vem da desarticulação e da falta de projetos, até porque hoje há uma impossibilidade de um movimento falar pelo outro. É o problema de representação que vem com a questão do ‘lugar de fala’, em que apenas eu posso falar por mim mesma”, complementa. 

 

Curiosidades da Constituinte

 

Sabatistas

Um dos mais fortes movimentos de pressão da sociedade veio dos chamados sabatistas, membros de religiões que guardam o sábado. A reivindicação deles foi para que as provas de concursos públicos e vestibulares não fossem aplicadas aos sábados, devendo esse dispositivo constar na Constituição. O pleito foi alcançado.

 

Olinda x Paulista

Uma questão envolvendo os limites de Olinda e Paulista foi curiosa. Discutia-se, na época, se os conjuntos habitacionais de Rio Doce e o bairro Cidade Tabajara seriam de Olinda ou Paulista. No ‘apagar das luzes’ dos trabalhos constituintes, já na redação final, o então deputado Álvaro Ribeiro aprovou uma emenda dando a destinação para Olinda. Ele aproveitou um momento em que o então deputado Geraldo Pinho Alves Filho – filho do então prefeito de Paulista – estava ausente para emplacar a emenda.

Parecer em três idiomas

Com renomados juristas, a equipe que auxiliou o relator Marcus Cunha tinha o desafio de analisar as quase mil emendas lançadas ao texto-base. Logo no início, com uma pilha gigantesca de emendas, um dos integrantes da equipe apresenta parecer para uma delas, em dez laudas, com trechos em alemão, latim, italiano… Foi elogiado, mas com o conselho de “não gastar muito o inglês” para não atrasar a análise da totalidade.

Tensão com servidores demitidos

Um dos focos de tensão da Constituinte foi a decisão do governador Miguel Arraes de demitir cerca de 6 mil servidores que haviam sido contratados sem concurso, antes de a prática ser definitivamente proibida pela Constituição Federal de 1988. “Esse grupo ficou insatisfeito e realizava protestos. Num deles, os manifestantes agrediram verbalmente a única deputada daquela legislatura, Lúcia Heráclio (PMDB). Um dos nossos colegas queria sacar uma arma no meio da multidão, mas eu o convenci a não fazer isso”, conta José Humberto Cavalcanti.