Publicado em 28/03/2019 - 14:03

Uma cadeira, cinco deputadas

Eleito para atual Legislatura, mandato coletivo de mulheres busca inovar sistema de representação política

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Edson Alves Jr.

No Poder Legislativo, a regra de votar em indivíduos predominou até muito recentemente. Porém, desde 2016, diversos movimentos pelo Brasil vêm tentando construir uma nova maneira de exercer a representação política: criar mandatos nos quais um grupo de pessoas, e não apenas uma, assume a responsabilidade pela vaga no parlamento.

Em 2019, o mandato coletivo chegou a Pernambuco, com a eleição das Juntas (PSOL), que receberam 39.175 votos e alcançaram uma cadeira na Alepe. A mandatária oficial é Jô Cavalcanti, trabalhadora ambulante que milita, há seis anos, no Sindicato de Trabalhadores Informais (Sintraci). Mas a candidatura foi apresentada ao eleitor com um pacto de confiança – todas as decisões devem passar pelo conjunto de cinco mulheres que inclui, além de Jô, a jornalista Carol Vergolino, a militante estudantil Joelma Carla, a professora Kátia Cunha e a advogada Robeyoncé Lima.

Em 2019, o mandato coletivo chegou a Pernambuco com a eleição das Juntas, que receberam 39.175 votos e alcançaram uma cadeira na Alepe. Foto: Breno Laprovitera

NOVIDADE – Em 2019, o mandato coletivo chegou a Pernambuco com a eleição das Juntas, que receberam 39.175 votos e alcançaram uma cadeira na Alepe. Foto: Breno Laprovitera

“A gente vinha fazendo militância na rua, mas tem uma hora que é preciso disputar outros espaços. As leis são feitas aqui dentro, na Alepe”, considera Jô Cavalcanti. Carol Vergolino explica que a candidatura coletiva teve origem em duas ideias. “A primeira veio de uma formação jurídica que tive, no ano passado, num encontro do movimento nacional Ocupa Política, do qual faço parte. Lá, soube da ideia de nove pessoas se candidatarem com um único número para deputado estadual em São Paulo”, relata, fazendo referência à Banda Ativista Paulista, que obteve vaga na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) nas Eleições de 2018.

“Juntamos essa inovação com a militância da PartidA, que é um movimento pela ocupação dos espaços pelas mulheres. Daí surgiu o conceito de uma candidatura coletiva feminista, juntando mulheres que já estavam se mobilizando para lançar suas candidaturas individualmente”, completa Vergolino. “Os movimentos de que nós participamos – feministas, jovens, trabalhadores, LGBT – já têm a característica de serem horizontais e trabalharem coletivamente. Foi muito natural traçar o caminho de uma forma coletiva de exercer o mandato”, expôs.

 

Funcionamento e legislação

Os mandatos coletivos precisam se adaptar às leis e aos regulamentos que regem a atuação parlamentar. Essas normas têm, como premissa, a atuação individual do deputados. “O mandato coletivo é um fenômeno político, mas não jurídico. Na ordem jurídica, o exercício do mandato é pessoal e intransferível”, explica o procurador-geral-adjunto da Alepe, Silvio Pessoa Junior.

“O mandato coletivo é um fenômeno político, mas não jurídico. Na ordem jurídica, o exercício do mandato é pessoal e intransferível.”

Silvio Pessoa Jr., procurador-geral-adjunto da Alepe

O caráter “pessoal e intransferível” do mandato significa que apenas Jô Cavalcanti poderá ter voz no Plenário, assinar os atos e projetos de lei e responder pelas prestações de contas oficiais do gabinete junto ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE). “A inovação política apresentada por elas na proposta de mandato coletivo é que as deliberações prévias ao exercício do mandato serão debatidas por esse coletivo, sintetizando posições de diversos segmentos sociais”, comenta o procurador da Assembleia.

Formalmente, Carol Vergolino e Joelma Carla foram nomeadas como assessoras especiais do gabinete do mandato, enquanto Robeyoncé Lima e Kátia Cunha ainda aguardam a conclusão de processos em outros órgãos para serem cedidas como servidoras a serviço da Alepe.

Um exemplo de como funciona um mandato coletivo na prática vem da Câmara de Vereadores de Belo Horizonte (MG). Nas eleições de 2016, 14 candidatos e candidatas concorreram individualmente pelo PSOL, mas compartilhando uma campanha política unificada. Os votos obtidos foram o suficiente para duas vagas, ocupadas oficialmente pelas vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabella. Ao chegarem ao parlamento, elas se uniram à suplente Bella Gonçalves num único gabinete, batizado de Gabinetona, onde as três atuavam como covereadoras e buscavam integrar às decisões todos os movimentos que participaram da campanha.

“No nosso caso, não havia um compromisso de fazer um mandato coletivo na campanha, mas esse desejo surgiu após a eleição, com base no espírito coletivo que já tínhamos no movimento. Quisemos fazer algo diferente diante da desesperança da sociedade frente a um sistema baseado na competição e na financeirização da política”, conta a covereadora Bella Gonçalves. “Por isso, construímos o mandato a partir do princípio da confluência máxima de todas as lutas. Os militantes de diversos grupos não têm mais que competir por esse espaço, que passa a reconhecer a importância de cada luta”, complementa.

"Não havia compromisso de fazer um mandato coletivo na campanha, mas esse desejo surgiu após a eleição, com base no espírito coletivo que já tínhamos no movimento", explica Bella Gonçalves, covereadora em Belo Horizonte. Foto: Abraão Bruck/CMBH

GABINETONA – “Não havia compromisso de fazer um mandato coletivo na campanha, mas esse desejo surgiu após a eleição, com base no espírito coletivo que já tínhamos”, explica Bella Gonçalves, covereadora em Belo Horizonte. À esquerda dela, a covereadora Cida Falabella. Foto: Abraão Bruck/CMBH

A Gabinetona divulga no site as principais votações no Plenário da Câmara de Vereadores de Belo Horizonte, com justificativas para os votos, que são tomados em conjunto pelas duas covereadoras. “No caso em que houve discordância, conseguimos criar um processo afetuoso, aberto e democrático de debate de posições sobre as partes envolvidas. Mas divergências são raras, porque somos norteadas pelos mesmos princípios: antirracistas, feministas, populares, anticapitalistas”, relata Bella Gonçalves.

As parlamentares também doam de 20 a 30% dos salários, que são revertidos para custear “mecanismos de reconhecimento a iniciativas sociais e culturais em Belo Horizonte”, segundo o site do mandato. “Temos ainda um laboratório popular de leis, para que projetos estratégicos sejam apresentados apenas após debate e construção da proposta. O deputado deixa de ter uma relação como provedor da comunidade para ter um mandato aberto, poroso à participação da cidade”, considera.

“Boa parte dessa crise de representação política que vivemos vem do fato de os partidos políticos se tornarem organizações burocráticas, marcada pela distância entre a base e a cúpula.”

Maria Eduarda Rocha, socióloga

Nas Eleições de 2018, uma das vereadoras da Gabinetona, Áurea Carolina, elegeu-se para a Câmara Federal. Outra integrante do grupo, Andreia de Jesus, foi eleita para a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). “Nossa ideia é fazer um único mandato articulado nos três níveis”, prossegue Bella.

Com representação na Câmara Federal, o mandato poderá discutir proposições como a da deputada federal Renata Abreu (PODE-SP), que apresentou, em 2017, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para oficializar a existência dos mandatos coletivos. O projeto foi desarquivado em fevereiro deste ano e pode voltar a ser analisado pelo Congresso Nacional nesta nova legislatura.

Para Bella Gonçalves, a posição do mandato sobre a possibilidade de uma mudança que transforme o pacto de confiança atual numa regulamentação legal deve passar pela discussão coletiva que marca a atuação do grupo. “Quando iniciamos o mandato, em 2016, nada havia sido formatado antes. Queremos construir qualquer mudança reinventando, testando e aprofundando novas ideias”, observa a covereadora.

Na análise da socióloga Maria Eduarda Rocha, a criação de um mandato coletivo surge dos próprios valores dos movimentos que apoiaram a candidatura. “Para esses grupos, é muito importante o estabelecimento de redes de diálogo que superem um certo egocentrismo que a cultura contemporânea ajuda a fomentar”, diz a pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

“Há também uma estratégia política de problematizar a ideia de que é necessário haver um ‘líder’, essa pessoa que fala pelo grupo. Boa parte dessa crise de representação política que vivemos vem do fato de os partidos políticos se tornarem organizações burocráticas, marcadas pela distância entre a base e a cúpula”, completa Maria Eduarda.

 

*Fotos em destaque (home e Notícias Especiais): Jarbas Araújo